Não
pretendo neste artigo debater a já debatidíssima
questão das relações entre a Igreja e o Estado. A este propósito, a Igreja
Católica já definiu de modo irretorquível e
inalterável seu pensamento, baseando-se em uma extensa e vigorosa argumentação
que excederia de muito os limites de um simples artigo de jornal. Mas a notícia
que o “Legionário” publica hoje em sua primeira página, referente a decisões
assumidas pelo Episcopado Argentino quanto às relações entre a Ação Católica e
o Poder Temporal são tão oportunas e tão santamente ousadas, que não posso
deixar de, a este propósito, elucidar alguns particulares pouco conhecidos, da
famosa questão.
* * *
Todos
os erros referentes às relações entre os Poderes Espiritual e Temporal estão
eivados de um espírito naturalista fácil de caracterizar. A este propósito,
como se dá em outros terrenos, é curioso notar que todas as doutrinas que se
afastam do Catolicismo, por mais opostos que sejam entre si, estão
reciprocamente ligadas por vínculos íntimos, e que a distância que
aparentemente as separa é apenas ilusória. Na realidade, a única posição
doutrinária da qual elas estão distanciadas por um verdadeiro abismo é da
Igreja. Porque entre tudo que é católico e aquilo que se distancia da Igreja,
por uma divergência ainda que aparentemente mínima, há um abismo imenso: o
abismo que separa o Céu do inferno.
O
naturalismo, em síntese, é a negação de tudo aquilo que não está compreendido dentro
da natureza. Ele constitui, pois, uma negação completa do Catolicismo, que
afirma um maravilhoso conjunto de Verdades segundo as quais todo o Universo foi
criado por Deus, é conservado em sua existência por Deus, e deixará de existir
imediatamente desde que Deus lhe retire o apoio. Assim, pois, toda a força da
natureza não é senão um efeito da onipotência misericordiosa de Deus. Mas Deus
não age apenas sobre o universo por meio da natureza que Ele próprio criou.
Além disto, Ele atua dentro do Universo criado por meio de intervenções
sobrenaturais de que a História registra inúmeros exemplos. Assim, por exemplo,
se um determinado remédio tem um efeito curativo próprio, este efeito lhe foi
comunicado por Deus quando criou o mundo. E, quando o remédio cura alguém, ele
o faz por meio de uma ação natural que resulta da vontade de Deus, o Qual
poderia ter deixado de criar o ingrediente curativo, ou de, criando-o, lhe
comunicar o vigor curativo que tem. Além desta ação, que é própria à natureza,
há outra, em matéria de cura, que é sobrenatural. É o caso do que se dá com a
água de Lourdes. Sabe-se que o uso dessa água por
inúmeros doentes tem tido sobre eles o efeito curativo mais maravilhoso. Mas
esse efeito não é próprio à água em si, a qual não é outra coisa senão o “H2O”
dos químicos. Esse efeito resulta exclusivamente de uma ação de Deus sobre o
paciente que faz uso da água, ação esta que, por ser sobrenatural, isto é,
alheia e superior às propriedades naturais da água, se chama uma ação
“sobrenatural”.
Essas
intervenções de Deus feitas diretamente, ou também indiretamente quando feitas
por meio dos Anjos ou dos Santos, são raras na ordem sensível das coisas e
constituem os milagres. Tais milagres se verificam nas mais variadas
circunstâncias. Ora é uma aparição, como no caso de Lourdes,
Fátima ou Salette, ora é uma cura ou a ressurreição
de algum morto, como fez São Francisco de Sales; ora, finalmente, é uma ciência
ou um poder excepcional que Deus concede a alguns de seus servos para levarem a
cabo obras superiores às simples forças de sua natureza humana; é este o caso
de Santa Joana D’Arc e de São Tomás de Aquino, a quem
Deus concedeu recursos especiais para levar a cabo obras superiores aos
recursos naturais de um ou de outra.
* * *
Feita
esta distinção entre natural e sobrenatural, vejamos até que ponto é
sobrenatural a Igreja Católica.
Esta
se define como sendo a sociedade sobrenatural instituída por Nosso Senhor Jesus
Cristo para a salvação eterna do gênero humano. Cada um dos termos desta
definição implica na afirmação do sobrenatural, se baseia no sobrenatural, e
rui por terra se negarmos o sobrenatural.
A
Igreja é sobrenatural porque ela foi fundada pelo próprio Homem-Deus,
para um fim sobrenatural, como seja a salvação das almas. E os meios de que ela
se serve para conseguir este fim são principalmente sobrenaturais.
Efetivamente,
ensina-nos a doutrina católica que, sem a graça sobrenatural de Deus, nem um
único homem é capaz de professar a Fé. Não há pois, conversão alguma sem a ação
sobrenatural da graça. Por outro lado, nem um único homem é capaz de perseverar
na Fé sem o auxílio da graça. A Igreja, que é a sociedade dos que crêem na
mesma Fé verdadeira, se esfacelaria, pois, sem o auxílio da graça. Finalmente,
ninguém, mesmo que já seja bom católico, pode subir através dos diversos
degraus da perfeição espiritual sem o auxílio sobrenatural da graça. De sorte
que a Igreja, sem o auxílio da graça, não poderia nem conquistar novos membros,
nem aperfeiçoar os que já tem, e nem mesmo conservá-los. Brotada do
sobrenatural, vivendo por meio do sobrenatural, e para o sobrenatural, ela
desaparecia instantaneamente se, por um segundo, lhe faltasse o auxílio do
sobrenatural.
Afirmar,
pois, que o sobrenatural não existe, ou duvidar simplesmente do sobrenatural, é
falsear profundamente a concepção do que seja a Igreja.
* * *
O
mapa doutrinário do mundo seria muito simples se, perante o naturalismo, que é
a negação do sobrenatural, o espírito humano fosse capaz de assumir apenas as
duas atitudes coerentes: ou a afirmação plena ou a negação completa. A primeira
procedente de premissas verdadeiras e conduzindo para a Verdade perfeita; a
segunda procedente de premissas errôneas e conducente ao erro completo; têm
ambas coerência. Mas a verdade é que o espírito humano se situa, de preferência,
por sua debilidade culposa, nas posições intermediarias, em que nem se abraça
totalmente à verdade, nem se aceita inteiramente o erro. Não há apenas homens
com ou sem Fé, há também os homens de pouca Fé, os homens que, como São Pedro,
são capazes de tentar, em momentos de fervor, o caminhar sobre ondas revoltas;
e que, subitamente, quando menos se espera, começam a se atolar no abismo,
cheios de medo e de ansiedade, porque a Fé, sem desaparecer inteiramente,
minguou por culpa deles mesmos.
Como
passaremos a ver, muitas das mais importantes heresias políticas de nosso
século não provém exclusivamente dos que são plena e cruamente naturalistas,
negando absolutamente o sobrenatural; mas ainda, e talvez principalmente, dos
que, reconhecendo embora a divindade da Igreja, e, portanto, seu caráter
sobrenatural, não têm bastante espírito de Fé para ver a Igreja única e
exclusivamente a Igreja através desse prisma, o único entretanto através do
qual nossa inteligência pode compreender a realidade do que, dentro dela,
existe. Reconhecendo embora que a Igreja é divina, eles cedem à tentação de a
encarar, sob alguns de seus aspectos, como uma instituição meramente natural,
como um clube ou uma associação beneficente qualquer. Ou, então, reconhecendo
embora a divindade da Igreja, eles não tem disto uma consciência
suficientemente esclarecida e certa, a ponto de deduzir dessa divindade todas
as prerrogativas que realmente ela encerra. Daí, uma dupla forma de naturalismo
ou de laicismo:
a)
a pessoa tem a tendência
de reconhecer a divindade da Igreja, mas, por uma concepção naturalista do
universo, restringir o papel sobrenatural da Igreja no mundo;
b)
a pessoa, reconhecendo
embora a divindade da Igreja, não tem disto uma convicção suficientemente
profunda e extensa, de sorte que tem a tendência de encarar os benefícios que a
Igreja presta à civilização e à ordem natural como simples benefícios humanos
que constituem para a Igreja um fim
É
evidente que a primeira tendência tem como conseqüência uma restrição da
atividade da Igreja no mundo moderno, enquanto a segunda tende, pelo contrário,
a uma ampliação indefinida de suas funções. Ambas as tendências, porém,
refletem um conhecimento errôneo do caráter sobrenatural da Igreja. O que
lateja no fundo de ambas as concepções é uma negação, ao menos parcial, do
sobrenatural. Essa negação implica em desvirtuar profundamente a noção do que
seja a Igreja e de seu papel no mundo.
É
exatamente a todos estes erros, que assumem entre nós expressões muito práticas
e muito nocivas, que o Episcopado Argentino firmou uma doutrina que não é senão
a aplicação da doutrina católica já definida pela Santa Sé. Mas uma aplicação
que tem certo caráter de novidade pela extensão prática que ela dá à atitude
dos Papas. E, por isto mesmo, uma aplicação muitíssimo digna de atenção. É o
que, com a graça de Deus, veremos no próximo artigo.