Legionário, 353, 18 de junho de 1939

Um documento que todos os católicos devem ler

Não pretendo neste artigo debater a já debatidíssima questão das relações entre a Igreja e o Estado. A este propósito, a Igreja Católica já definiu de modo irretorquível e inalterável seu pensamento, baseando-se em uma extensa e vigorosa argumentação que excederia de muito os limites de um simples artigo de jornal. Mas a notícia que o “Legionário” publica hoje em sua primeira página, referente a decisões assumidas pelo Episcopado Argentino quanto às relações entre a Ação Católica e o Poder Temporal são tão oportunas e tão santamente ousadas, que não posso deixar de, a este propósito, elucidar alguns particulares pouco conhecidos, da famosa questão.

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Todos os erros referentes às relações entre os Poderes Espiritual e Temporal estão eivados de um espírito naturalista fácil de caracterizar. A este propósito, como se dá em outros terrenos, é curioso notar que todas as doutrinas que se afastam do Catolicismo, por mais opostos que sejam entre si, estão reciprocamente ligadas por vínculos íntimos, e que a distância que aparentemente as separa é apenas ilusória. Na realidade, a única posição doutrinária da qual elas estão distanciadas por um verdadeiro abismo é da Igreja. Porque entre tudo que é católico e aquilo que se distancia da Igreja, por uma divergência ainda que aparentemente mínima, há um abismo imenso: o abismo que separa o Céu do inferno.

O naturalismo, em síntese, é a negação de tudo aquilo que não está compreendido dentro da natureza. Ele constitui, pois, uma negação completa do Catolicismo, que afirma um maravilhoso conjunto de Verdades segundo as quais todo o Universo foi criado por Deus, é conservado em sua existência por Deus, e deixará de existir imediatamente desde que Deus lhe retire o apoio. Assim, pois, toda a força da natureza não é senão um efeito da onipotência misericordiosa de Deus. Mas Deus não age apenas sobre o universo por meio da natureza que Ele próprio criou. Além disto, Ele atua dentro do Universo criado por meio de intervenções sobrenaturais de que a História registra inúmeros exemplos. Assim, por exemplo, se um determinado remédio tem um efeito curativo próprio, este efeito lhe foi comunicado por Deus quando criou o mundo. E, quando o remédio cura alguém, ele o faz por meio de uma ação natural que resulta da vontade de Deus, o Qual poderia ter deixado de criar o ingrediente curativo, ou de, criando-o, lhe comunicar o vigor curativo que tem. Além desta ação, que é própria à natureza, há outra, em matéria de cura, que é sobrenatural. É o caso do que se dá com a água de Lourdes. Sabe-se que o uso dessa água por inúmeros doentes tem tido sobre eles o efeito curativo mais maravilhoso. Mas esse efeito não é próprio à água em si, a qual não é outra coisa senão o “H2O” dos químicos. Esse efeito resulta exclusivamente de uma ação de Deus sobre o paciente que faz uso da água, ação esta que, por ser sobrenatural, isto é, alheia e superior às propriedades naturais da água, se chama uma ação “sobrenatural”.

Essas intervenções de Deus feitas diretamente, ou também indiretamente quando feitas por meio dos Anjos ou dos Santos, são raras na ordem sensível das coisas e constituem os milagres. Tais milagres se verificam nas mais variadas circunstâncias. Ora é uma aparição, como no caso de Lourdes, Fátima ou Salette, ora é uma cura ou a ressurreição de algum morto, como fez São Francisco de Sales; ora, finalmente, é uma ciência ou um poder excepcional que Deus concede a alguns de seus servos para levarem a cabo obras superiores às simples forças de sua natureza humana; é este o caso de Santa Joana D’Arc e de São Tomás de Aquino, a quem Deus concedeu recursos especiais para levar a cabo obras superiores aos recursos naturais de um ou de outra.

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Feita esta distinção entre natural e sobrenatural, vejamos até que ponto é sobrenatural a Igreja Católica.

Esta se define como sendo a sociedade sobrenatural instituída por Nosso Senhor Jesus Cristo para a salvação eterna do gênero humano. Cada um dos termos desta definição implica na afirmação do sobrenatural, se baseia no sobrenatural, e rui por terra se negarmos o sobrenatural.

A Igreja é sobrenatural porque ela foi fundada pelo próprio Homem-Deus, para um fim sobrenatural, como seja a salvação das almas. E os meios de que ela se serve para conseguir este fim são principalmente sobrenaturais.

Efetivamente, ensina-nos a doutrina católica que, sem a graça sobrenatural de Deus, nem um único homem é capaz de professar a Fé. Não há pois, conversão alguma sem a ação sobrenatural da graça. Por outro lado, nem um único homem é capaz de perseverar na Fé sem o auxílio da graça. A Igreja, que é a sociedade dos que crêem na mesma Fé verdadeira, se esfacelaria, pois, sem o auxílio da graça. Finalmente, ninguém, mesmo que já seja bom católico, pode subir através dos diversos degraus da perfeição espiritual sem o auxílio sobrenatural da graça. De sorte que a Igreja, sem o auxílio da graça, não poderia nem conquistar novos membros, nem aperfeiçoar os que já tem, e nem mesmo conservá-los. Brotada do sobrenatural, vivendo por meio do sobrenatural, e para o sobrenatural, ela desaparecia instantaneamente se, por um segundo, lhe faltasse o auxílio do sobrenatural.

Afirmar, pois, que o sobrenatural não existe, ou duvidar simplesmente do sobrenatural, é falsear profundamente a concepção do que seja a Igreja.

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O mapa doutrinário do mundo seria muito simples se, perante o naturalismo, que é a negação do sobrenatural, o espírito humano fosse capaz de assumir apenas as duas atitudes coerentes: ou a afirmação plena ou a negação completa. A primeira procedente de premissas verdadeiras e conduzindo para a Verdade perfeita; a segunda procedente de premissas errôneas e conducente ao erro completo; têm ambas coerência. Mas a verdade é que o espírito humano se situa, de preferência, por sua debilidade culposa, nas posições intermediarias, em que nem se abraça totalmente à verdade, nem se aceita inteiramente o erro. Não há apenas homens com ou sem Fé, há também os homens de pouca Fé, os homens que, como São Pedro, são capazes de tentar, em momentos de fervor, o caminhar sobre ondas revoltas; e que, subitamente, quando menos se espera, começam a se atolar no abismo, cheios de medo e de ansiedade, porque a Fé, sem desaparecer inteiramente, minguou por culpa deles mesmos.

Como passaremos a ver, muitas das mais importantes heresias políticas de nosso século não provém exclusivamente dos que são plena e cruamente naturalistas, negando absolutamente o sobrenatural; mas ainda, e talvez principalmente, dos que, reconhecendo embora a divindade da Igreja, e, portanto, seu caráter sobrenatural, não têm bastante espírito de Fé para ver a Igreja única e exclusivamente a Igreja através desse prisma, o único entretanto através do qual nossa inteligência pode compreender a realidade do que, dentro dela, existe. Reconhecendo embora que a Igreja é divina, eles cedem à tentação de a encarar, sob alguns de seus aspectos, como uma instituição meramente natural, como um clube ou uma associação beneficente qualquer. Ou, então, reconhecendo embora a divindade da Igreja, eles não tem disto uma consciência suficientemente esclarecida e certa, a ponto de deduzir dessa divindade todas as prerrogativas que realmente ela encerra. Daí, uma dupla forma de naturalismo ou de laicismo:

a)    a pessoa tem a tendência de reconhecer a divindade da Igreja, mas, por uma concepção naturalista do universo, restringir o papel sobrenatural da Igreja no mundo;

b)    a pessoa, reconhecendo embora a divindade da Igreja, não tem disto uma convicção suficientemente profunda e extensa, de sorte que tem a tendência de encarar os benefícios que a Igreja presta à civilização e à ordem natural como simples benefícios humanos que constituem para a Igreja um fim em si. Assim, a Igreja passa a ser aos olhos delas uma instituição temporal como outra qualquer, à qual se tem a tendência de atribuir não apenas as funções próprias espirituais e sociais, mas muitas outras ainda, de interesse público.

É evidente que a primeira tendência tem como conseqüência uma restrição da atividade da Igreja no mundo moderno, enquanto a segunda tende, pelo contrário, a uma ampliação indefinida de suas funções. Ambas as tendências, porém, refletem um conhecimento errôneo do caráter sobrenatural da Igreja. O que lateja no fundo de ambas as concepções é uma negação, ao menos parcial, do sobrenatural. Essa negação implica em desvirtuar profundamente a noção do que seja a Igreja e de seu papel no mundo.

É exatamente a todos estes erros, que assumem entre nós expressões muito práticas e muito nocivas, que o Episcopado Argentino firmou uma doutrina que não é senão a aplicação da doutrina católica já definida pela Santa Sé. Mas uma aplicação que tem certo caráter de novidade pela extensão prática que ela dá à atitude dos Papas. E, por isto mesmo, uma aplicação muitíssimo digna de atenção. É o que, com a graça de Deus, veremos no próximo artigo.