Em artigos anteriores mostrei a manobra envolvente que certas pseudo-direitas, artificiosamente, delinearam a fim de
desnortear e atrair a opinião católica, servindo-se do prestígio mundial desta,
para arrastar a humanidade ao longo de caminhos muito diversos dos de Nosso
Senhor Jesus Cristo. Mostrei ainda como não faltaram católicos sofrendo de uma
aguda moléstia espiritual, a “adesite”, que,
sofregamente, ansiosamente, arrebatadamente correram aos pés de Hitler e de Maurras, sicut servi ad fontes aquarum, esquecidos
de que é no Vaticano, aos pés de Pedro, que se encontra a “água viva” que se
transforma, no espírito dos que a sorvem, em “fonte que jorrará até a vida
eterna”. E mostrei ainda como Pio XI, fazendo eco aos ensinamentos de Leão
XIII e de Pio
X, cortou pela raiz essas loucas veleidades de adesão.
Veremos hoje como a mesma moléstia de “adesite”
produzindo seus frutos também no setor da extrema esquerda, provocou outra
intervenção de Pio XI, ao menos tão enérgica quanto a que aquele Pontífice
julgou, na sua sabedoria, dever praticar contra o nazismo e a “Action Française”.
Nesse ponto ainda, Pio XI, como era de esperar graças à maravilhosa
continuidade existente na Sé de Pedro, outra coisa não fez senão reafirmar e
ampliar os princípios enunciados por seus antecessores e, de modo muito
particular, pelo Santo Padre Pio X, de imortal e santa memória. É impossível,
pois, examinar este assunto, sem nos reportarmos ao pontificado deste último
Papa.
* * *
Durante o Pontificado de Pio
X, o liberalismo tinha chegado ao auge de seu prestigio mundial. Politicamente,
a Europa
inteira se encontrava em pleno regime democrático. As monarquias aristocráticas
que sobreviviam, sentiam nitidamente que as vigas mestras de sua estrutura
política estalavam e se partiam graças às labaredas da revolução ideológica que
fervilhava nos clubes operários e nas academias.
A tal ponto esta convicção estava enraigada no
espírito dos mais qualificados representantes da aristocracia européia, que o
cerimonial das cortes se democratizava, as mesalianças
enxameavam escandalosamente nos mais altos círculos sociais, e os reis, para
prolongar algum tempo a agonia das tradições que representavam, procuravam
mostrar-se o mais possível ao povo, pela propaganda oficial, como simples
burgueses, apresentados como se fossem personagens oprimidos pela etiqueta e
pelo fausto da corte. Cheguei a ver, certa ocasião, um desenho de propaganda
que mostrava uma princesa real da Inglaterra dançando com operários...
Se isto se dava nas cortes, nos círculos da alta burguesia e da
burguesia media o fenômeno da plebeização dos
costumes se denunciava cada vez mais abertamente. Banidas as velhas fórmulas de
polidez, banida a dignidade protocolar das reuniões sociais, banida ainda a
cerimônia particularmente acentuada que caracterizava as relações entre os dois
sexos. Uma liberdade esportiva e desabusada pompeava
sobre as ruínas de todas estas tradições, e, despindo cada vez mais os seus,
aliás, diafaníssimos véus, deixava entrever como
fruto dessa evolução uma sociedade inteiramente “americanizada” — o termo é
daquela época — mero eufemismo com que se designava uma sociedade absolutamente
proletarizada.
Economicamente, as devastações do liberalismo eram sem conta. Mas o
desenvolvimento do comércio, da indústria e das ciências naturais permitiam
conservar a esse mundo decadente um aspecto de aparente esplendor material e
intelectual, que iludia os espíritos superficiais, como o aparente vigor dos
temperamentos apoplécticos pode iludir os médicos.
Vista, pois, superficialmente e a “vol d'oiseau”, a humanidade parecia em
vésperas de atingir a era do ouro, consolidando sobre a insolência de sua
impiedade e do espírito revolucionário que a caracterizava, a definitiva e
imortal prosperidade do mundo. A questão era principalmente de concluir tantas
reformas “úteis”. Varridos do mundo os últimos “escombros medievais”, enforcado
o último rei nas tripas do último Padre — essa expressão também pertence ao
“jargão” revolucionário da época — estava feita a limpeza final e o mundo,
definitivamente livre, igual e confraternizado, seguiria tranqüilamente o
caminho ascensional da evolução darwiniana, até
atingir a prosperidade absoluta e a felicidade completa.
* * *
Diante de tal panorama, muitos católicos “modicae fidei” vacilaram. Não conhecendo ou não
querendo ouvir as palavras alarmadas dos Romanos Pontífices, que denunciavam
como iminente uma crise mundial que afogaria em sangue e lama os escombros
dessa felicidade, sacrílega, pensavam muitas pessoas que seria necessário que o
catolicismo também tratasse, como as monarquias, de se adaptar à época com toda
a celeridade possível. Era preciso que a Santa Igreja também figurasse na
farândola política da época, que o barrete frígio na
testa e com a bandeira vermelha da liberdade na mão. Ainda que fosse só por
algum tempo, e para iludir. Mas uma resistência aberta, categórica, clara, aos
invencíveis senhores do mundo, um “Não” gritado com dignidade divina no meio da
confusão diabólica do mundo liberal, não podia passar pela cabeça de tal gente.
Por isto, trataram eles de preparar a adesão. De fato, essa adesão já
existia no íntimo de seus corações transviados. Adoravam eles a dois Senhores.
Um, era o Divino Redentor. O outro era o ídolo bachico
da revolução. Como se essa adoração simultânea fosse possível, e a simples
presença do ídolo (...) da Revolução no templo do Espírito
Santo, que é a alma de todo o filho da Igreja, não fosse por si só uma
abominável profanação! O que restava era tão somente a tarefa de exteriorizar
por atos materiais e visíveis essa vergonhosa adesão do espírito do mundo. E,
nesse caminho vexatório, procuraram eles arrastar a Igreja inteira.
* * *
O pretexto, no tempo de Pio
X, foi o “Sillon”. Começou ele, muito de mansinho, preconizando a
adoção de simples métodos de ação mais conformes ao espírito dos tempos. As
primeiras reformas propostas foram tão moderadas e tão criteriosas que
receberam a aprovação da Hierarquia Católica. Depois, aos poucos, de uma
reforma de métodos passaram eles para uma reforma de programas, e de uma
reforma de programas para uma reforma de espíritos, que finalmente, provocou a
intervenção do Papa. Ficou patente que o que o “Sillon”
desejava era, no fundo, pregar com argumentos tirados do Evangelho(!) uma
revolução muitíssimo parecida com a revolução socialista. Às expensas desse
artifício queria ele atrair para a parte propriamente dogmática da doutrina da
Igreja a simpatia dos socialistas. E reconciliar finalmente a Revolução com a
Igreja, em uma transação em que a Igreja — eles não o percebiam ou o percebiam
apenas confusamente — seria tragada pela revolução!
Inútil é dizer que, sendo a Igreja indefectível, Pio X interveio e
destruiu as tentativas dessa manobra sacrílega. E, denunciando claramente todos
os erros do “Sillon”, aquele Papa mostrou mais uma
vez, como já o haviam feito seus antecessores, que o abismo que separa a Igreja
da revolução é exatamente tão grande quanto o que separa Deus do demônio.
* * *
Pio XI teve de lutar contra uma reedição
do “Sillon”. Condenado esta por Pio X, muitos “sillonistas” se revoltaram e outros obedeceram. Destes
últimos, grande número, porém, obedeceu de modo incompleto, com uma obediência
mais externa do que interna, em que eles não penetraram até o âmago doutrinário
da condenação papal. Rejeitaram as conseqüências condenadas. Mas conservaram as
premissas más. E fizeram corrente e escola, em torno dessas premissas. Delas,
brotaria outro fruto de pecado. E esse fruto venenoso foi a “politique de la main tendue”.
Querendo adorar simultaneamente Deus e a Revolução, procuraram certos
elementos unir as causas irreconciliáveis da Igreja e do demônio. O pretexto
foi o nazismo. O catolicismo é antitotalitário. As
esquerdas também (??????). Por que não estabelecer entre comunistas e católicos
uma cooperação antinazista? Por que não fazer os
católicos marcharem nitidamente para a esquerda, enquanto os esquerdistas
fariam uma evolução para a Igreja? Nós cederíamos o temporal mas lucraríamos o
espiritual.
Não seria bom o negócio?
Desse ponto inicial falso inúmeros erros decorreram, que não vale a pena
repisar. O primeiro foi uma posição de hostilidade falsa e não de prudência em
relação à guerra da Espanha. O outro foi uma política francesa interna errônea,
que visava colocar escandalosamente ao serviço do “Front Populaire”, o
prestigio católico. Finalmente, uma tendência à aproximação filosófica entre
ambas as correntes se delineou que, se não teve a seu serviço representantes
notáveis de nenhuma corrente de pensamento, foi em todo o caso um fruto
expressivo dessa situação.
* * *
Os fatos ainda são recentes por demais para poderem ser historiados.
Parece positivo, porém, que é a visita do atual Pio XII à França que se deve a cessação de
tão doloroso e escandaloso estado de coisas. Obedecido docilmente pela quase
totalidade dos católicos franceses, sempre disciplinados, sempre ativos, sempre
dignos filhos da Primogênita da Igreja, o Santo Padre Pio XI condenou
formalmente a “politique de la main tendue”, nos termos
capciosos em que ela se apresentava.
Mais uma vez, o grande Pontífice que pregou a aproximação de todos os
homens de bem, esmagou uma política que não era senão a caricatura do que ele
pregara.