Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

 

Paz de Cristo e trégua de Satanás

 

 

"Legionário", nº 340, 19 de março de 1939

 

 

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Opus justitiae pax

(brasão do Papa Pio XII)

Em matéria política, não há hoje melhor tema de meditação do que as palavras que o Santo Padre Pio XII tem inscritas em seu brasão. Elas definem de modo perfeito o verdadeiro pensamento católico a respeito da paz, e mostram o abismo existente entre esse conceito e o pacifismo "à outrance", que supõe ser justo e proveitoso o sacrifício de todas as vítimas à voracidade de um insaciável agressor. Para a formação do senso católico nesse assunto, é excelente o desdobramento dos profundos conceitos que a divisa de Pio XII contém.

Diz o Santo Padre Pio XII que "a paz é fruto da justiça". Para compreendermos devidamente a definição, examinemos detidamente cada um de seus termos.

Comecemos pela palavra "paz". São Tomás de Aquino [citando Santo Agostinho, n.d.c.] define a paz como sendo a tranqüilidade da ordem. O Doutor Angélico distingue, pois, duas espécies de tranqüilidade, é evidente. Quando um homem, física e psiquicamente bem disposto dorme, apresenta ele evidentemente um aspecto de tranqüilidade. Essa tranqüilidade resulta da ordem que reina nele. Se alguma desordem orgânica - uma dor aguda, por exemplo - viesse a se manifestar nele, perderia ele seu aspecto de tranqüilidade. O mesmo se daria se algum grave pesadelo viesse a lhe ocasionar qualquer perturbação psíquica: imediatamente seu semblante deixaria de refletir tranqüilidade. É que a tranqüilidade que nele se notava era resultante de uma profunda ordem orgânica e psíquica, e, suprimida a causa, imediatamente deixaria de se manifestar o efeito.

Um homem desmaiado também pode dar a impressão de tranqüilidade. Evidentemente, entretanto, essa tranqüilidade que ele apresenta é muito diversa da que apresenta um homem saudável. A inércia do desmaio resulta de uma profunda desordem física ou psíquica. Ela é realmente uma tranqüilidade. Porém o desmaio não pode ser chamado de um estado de "paz", no sentido especial que lhe dá São Tomás. A paz é a tranqüilidade resultante da ordem. O desmaio resulta da desordem. É um estado de tranqüilidade, porém não é "paz".

Quando, pois, em linguagem tomista, se fala em paz internacional, não se designa com essa expressão toda e qualquer situação de tranqüilidade internacional, mas a um estado de tranqüilidade que resulte da boa ordem nas relações entre os povos.

Por isto mesmo, uma política que vise acima de tudo e a custo das maiores imoralidades manter a tranqüilidade, evitando a guerra, não é uma política de paz no sentido tomista da palavra. Sendo a paz a tranqüilidade da ordem, e resultando a famosa "paz a todo custo" de violências e de atos de despotismo e de prepotência internacional de todo gênero, a conseqüência é que essa paz é resultante da desordem, pelo que não é senão uma falsa paz, uma paz com a qual um coração católico não se pode regozijar.

Melhor se poderia, talvez, compreender o que acima ficou dito, por meio de uma análise da palavra "ordem".

Diz-se de uma coisa que ela está em ordem, quando disposta convenientemente segundo o seu fim. Um relógio, por exemplo, tem por fim marcar as horas. Se todas as suas peças estão dispostas e constituídas convenientemente segundo esse fim, elas estão em ordem. Se alguma dessas peças foi fabricada ou disposta de modo a não promover o andamento do relógio, esse estará em desordem.

O mesmo se dá com o corpo humano. Quando todos os órgãos estão anatômica e fisiologicamente adequados ao seu fim, o corpo humano está em ordem. Se um órgão qualquer trabalha de modo contrário ao seu fim, o fígado, por exemplo, não segrega os sucos convenientes para a digestão, mas produz apenas um dos sucos, o organismo está em desordem. A ordem orgânica produz no corpo uma sensação de paz e bem-estar que Carrel chama o "silêncio orgânico", e que em linguagem vulgar chamamos saúde. A desordem orgânica produz uma perturbação que é o contrário da paz, e que chamamos doença.

Expondo, pois, em outros termos, a definição de São Tomás, podemos dizer que a paz é a tranqüilidade produzida pela fato de estarem as coisas dispostas segundo seu fim.

A essa definição, aplique-se o conceito do Santo Padre, e a verdadeira doutrina católica jorrará daí com evidência.

Diz o Papa que essa "tranqüilidade produzida pelo fato de estarem as coisas em ordem" é fruto da justiça.

Efetivamente, sem justiça não pode haver ordem, e sem ordem não há paz, como vimos.

Um exemplo concreto poderá facilmente provar que, sem justiça, pode haver uma certa tranqüilidade, mas não haverá ordem. Imagine-se uma família na qual os filhos tenham reduzido a revoltante servidão seus pais idosos. Nessa família se introduziu uma gravíssima injustiça, que constitui, em si mesma, uma desordem jurídica e moral. Violada a justiça, foi implicitamente violada a ordem. E só com a reintegração dos pais nos seus direitos, isto é, com a restauração da justiça, terá sido realmente restaurada a ordem moral e legal. Sem justiça, pois, não há ordem. Ora, como sem ordem não há paz, sem justiça não pode haver paz. A paz é, pois, um fruto da justiça. É esse o lema do Santo Padre Pio XII.

Por aí se compreende que a paz que o Santo Padre deseja instaurar no mundo, fruto da ordem e da justiça, a paz, portanto, que todos os católicos dignos desse nome devem ardentemente pedir ao Senhor, não pode ser qualquer, confundida erroneamente com a tranqüilidade decorrente da desordem, da prepotência brutal que se impõe diante de vítimas que não podem reagir. Não é paz a tranqüilidade estabelecida à custa da independência de nações que têm, em seu benefício, as mais sagradas garantias, como sejam:

1) tratados internacionais solenes, cuja violação é um escândalo abominável;

2) uma língua própria;

3) uma raça própria;

4) tradições históricas e culturais absolutamente peculiares e perfeitamente consolidadas e definidas.

Se a santidade dos tratados internacionais, a honra dos estadistas e das nações indistintamente são violadas para que se mantenha a tranqüilidade, essa tranqüilidade foi comprada a preço da iniqüidade e da imoralidade. Ela constitui, pois, uma violação profunda da justiça internacional, à qual todos os povos se devem submeter. E, sendo resultante dessa violação, não pode ser a paz do Papa, que a quer como fruto da justiça. Essa paz a todo o custo não pode ser abençoada por Cristo, essa paz não é a "paz de Cristo no Reino de Cristo". Essa paz não é a tranqüilidade da ordem. Essa paz é a tranqüilidade criminosa da cobra que, tendo devorado um carneiro, digere pesadamente sua vítima, enquanto os demais animais da floresta, momentaneamente tranqüilos por se verem livres da serpente, folgam com a ruína de uma vítima inofensiva.

Não, essa tranqüilidade do agressor e das suas vítimas de amanhã, essa paz não é a paz que decorre da justiça, não é uma paz autêntica, abençoada pelas mãos de Deus, e tem toda a precariedade das obras abortadas do pecado e da iniqüidade.


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