O “Legionário” já comentou a alocução de Natal,
proferida pelo Santo Padre. O comentário abrangeu, entretanto, apenas a parte
em que o Papa denunciou perigos e condenou erros. Resta comentar a parte
positiva, de suma importância.
Em nosso último artigo, já mostramos os
incalculáveis inconvenientes que de uma colisão profunda entre o Papado e o
regime fascista poderia decorrer para a Santa Igreja. Realmente, ninguém poderia
prever a atitude que tomaria o Sr. Mussolini e as restrições
parciais ou até totais que ele poderia impor ao normal funcionamento dos órgãos
que compõem a administração eclesiástica. Ferida a Santa Sé, o mundo católico
inteiro estaria ferido, e os mais graves assuntos religiosos de toda a
Cristandade poderiam sofrer uma interrupção no seu curso normal, cujos
inconvenientes é absolutamente impossível de calcular.
Entretanto, o Santo Padre, na grandeza de sua
sabedoria, julgou dever enfrentar todos esses inconvenientes, exclusivamente
para evitar que a legislação italiana ferisse dois pontos: a doutrina católica
sobre o matrimônio e a liberdade da Ação Católica. Em outros termos, ainda
mesmo que os mais pesados inconvenientes desabassem sobre os interesses
religiosos de toda a Cristandade, não seria possível, de nenhum modo, ao Santo
Padre, permitir que estes dois pontos fossem violados sem sua palavra de
protesto paternal, mas santamente destemida. Podem os católicos de nossos dias
ter uma lição mais sublime a respeito da grandeza do matrimônio sacramental e
da Ação Católica?
Não basta que nos preocupemos com os erros do
fascismo. Os católicos devem ser anticomunistas, anti-nazistas,
anti-liberais, anti-socialistas, anti-maçônicos
etc., porque são católicos. E nunca, como pensa certa gente, ser católico
porque são anticomunistas, anti-nazistas ou qualquer
outra coisa do mesmo gênero. Odiamos certamente o erro. Mas esse ódio é uma
conseqüência do amor à verdade. Mais, portanto, do que condenar o erro,
importa-nos conhecer e amar perfeitamente a verdade. É, pois, para nós, da mais
alta importância examinar as duas grandes verdades que o Santo Padre afirmou,
repetindo com o eloqüente vigor que todos Lhe conhecem, a doutrina já ensinada
por seus predecessores.
Infelizmente, as dimensões de um simples conquanto
longo artigo de jornal não nos permitem que tratemos devidamente de ambos os
assuntos. Preferimos, pois, escrever hoje sobre a Ação Católica, reservando-nos
para abordar, em outra oportunidade que se ofereça, a questão do matrimônio
religioso.
* * *
O que se dá na Itália a respeito da Ação
Católica é fácil de
descrever. O governo fascista, pela própria natureza do regime, tende a
enfeixar sob sua autoridade, e a orientar para os fins por ele colimados, todas as atividades sociais. Não lhe convém
pois, e isto está na própria essência dos Estados totalitários, que fique fora
desta órbita qualquer organização. Estado “totalitário” significa Estado que
abrange tudo, que intervém em tudo, que orienta e que disciplina tudo. E, neste
“tudo”, tanto estão compreendidas a economia, a defesa sanitária e a defesa
militar do país, quanto os esportes, as artes, a cultura e... a Religião.
Entretanto, Mussolini tem mitigado
notavelmente, na prática, os princípios da ala mais ardida do partido fascista.
E, por isto mesmo, tanto quanto eu saiba, nunca ou muito raramente se
verificaram na Itália conflitos entre associações religiosas, como Congregações
Marianas, Ordens Terceiras, Conferências Vicentinas
etc., e elementos fascistas. Ao menos depois da reconciliação subseqüente ao
incidente de 1931 e à Encíclica “Non abbiamo bisogno”, nunca mais
houve dificuldades.
Houve-as, entretanto, e muito fortes, quanto à Ação
Católica, a tal ponto que, mesmo antes da questão racista, ela tem sido o pomo
de discórdia de diversos conflitos entre o Vaticano e o Quirinal,
conflitos estes que, em 1931, quase tiveram um desfecho altamente dramático. Na
sua alocução de Natal, o Santo Padre alude a estes fatos, e mostra que eles
atingiram uma tal premência, que já não lhe é possível calar. E, a este
propósito, o Santo Padre repete as manifestações de particularíssimo carinho
que já tem tido, em inúmeras outras oportunidades, para com a Ação Católica, “a
menina de seus olhos”, como ele mesmo já disse.
* * *
Cabe aqui o primeiro comentário.
O Santo Padre, pela natureza de seu augusto cargo,
nunca pode dar sua adesão a doutrinas erradas, nem consentir em uma mutilação
dos direitos da Santa Igreja. Entretanto, a Igreja é Mãe. Por isto mesmo, na
ordem concreta dos fatos, condescende Ela freqüentemente com a autoridade
temporal, a fim de, salvos sempre os princípios, tolerar alguns inconvenientes
para evitar os inconvenientes ainda maiores que decorrem dos grandes conflitos
religiosos.
Pensamos que o Santo Padre poderia perfeitamente, a
fim de evitar novas dificuldades com o governo fascista, ordenar o fechamento
da Ação Católica, desde que ficasse bem claro que este fechamento não implica
no reconhecimento, ao Estado, do direito de cercear as atividades da Igreja,
mas apenas em uma concessão benévola, para evitar males maiores.
Neste sentido, a complacência da Igreja é tocante,
com prova manifesta de sua bondade maternal. Bastará ler, por exemplo, a
concordata entre a Santa Sé e Napoleão, para se ter uma idéia da benignidade da Igreja em
questões que não afetam os princípios de que Ela é infalível depositária.
Fechada a Ação Católica, nem por isto estaria
tolhida a possibilidade de a Igreja exercer entre os fiéis sua missão. Para
isto, existem as inúmeras outras associações religiosas que têm florescido na
Itália até aqui, e que continuam a florescer admiravelmente ao lado da Ação
Católica. Sem a Ação Católica tal qual ela está hoje organizada, a Igreja
poderia continuar no desempenho de sua tarefa. A Ação Católica absolutamente
não é, para a Santa Igreja, uma condição de existência. A Ação Católica é
apenas um meio que ela instituiu para, na época presente, atingir mais
facilmente a restauração do Reinado de Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas, para
este fim, não é indispensável a Ação Católica, no sentido estrito desta
palavra. Sem ela, os Apóstolos conquistaram o mundo...
Evidentemente, entendemos por “Ação Católica”
aquilo que esta expressão significa no seu sentido estrito, e não, em sentido
lato, qualquer ação praticada por qualquer católico, com permissão da
autoridade eclesiástica, no sentido do apostolado.
* * *
Nesta ordem de idéias, há na Santa Igreja um
exemplo frisante. Foi o fechamento da gloriosa e benemérita Companhia de Jesus por ordem do Papa.
Não nos cabe comentar aquela decisão pontifícia. O
que é certo é que a Companhia de Jesus, que vinha prestando então, como hoje, à
Igreja, os mais inestimáveis serviços, que correspondia evidentemente a um
plano absolutamente providencial, que era e é uma pepineira inexcedível de
Santos e de sábios insignes, a Companhia de Jesus, que era o martelo das
heresias e a admirável campeã da Fé, a Companhia de Jesus, que era o que é
hoje, isto é, a alegria e o orgulho santo de qualquer homem que tivesse dois
dedos de senso católico, a Companhia de Jesus foi fechada por Clemente XIV a 21 de julho de
1773, exclusivamente a fim de evitar um cisma de algumas nações católicas,
então governadas por elementos maçonizados.
A respeito dessa resolução pontifícia, a Companhia
de Jesus, tão profundamente atingida, guardou sempre um admirável silêncio.
Imitemo-la e, edificados pela maravilhosa disciplina de que deu provas, também
guardemos silêncio nós.
Sem comentar, entretanto, o fato quanto à
oportunidade e à conveniência da deliberação que o Pontífice tomou, uma coisa é
certa: é que se a Santa Sé chegou a dissolver a Companhia de Jesus sem
sacrifícios de princípios, ela poderá também, a fortiori, dissolver a Ação
Católica. A Igreja não desaparece com o desaparecimento de qualquer instituição
apostólica por Ela criada, por mais que essa instituição seja proveitosa e
providencial.
* * *
Isto posto, está claro que Pio XI poderia, para não
entrar em colisão com o fascismo, fechar a Ação Católica. Entretanto, o
Pontífice não o quis fazer. Por que? A razão é evidente. Ele acha que o
fechamento da Ação Católica traria inconvenientes tão profundos, que não são
comparáveis nem sequer às maiores lutas religiosas na Itália.
Se o Pontífice enfrenta tanto e tais perigos para
conservar a Ação Católica na integridade de sua pujança e de seu apostolado, o
que dizer-se dos católicos que não enfrentam e não dominam seus egoísmos, grandes ou pequenos, seus caprichos pessoais,
seus interesses, suas questiúnculas, para prestar à Ação Católica o mais
decidido, o mais entusiástico, o mais fervoroso apoio?
Para a liberdade e pujança da Ação Católica, Pio XI expõe a paz
religiosa de um país inteiro, de um admirável e belíssimo país que constitui
objeto de simpatia de toda a Cristandade. Para a grandeza da Ação Católica, não
exporemos também nós algo de nossos interesses, de nossas comodidades?