O ano de 1938 declinou
para o ocaso e já hoje pertence ao domínio da História. É cedo para que, em
torno dos dramáticos acontecimentos que o assinalaram, se pronunciem juízos
minuciosamente definitivos. Entretanto, suas linhas gerais já podem ser
julgadas, e este retrospecto é de evidente utilidade para nós, que nos
preparamos, cheios de apreensões e de esperanças, a viver laboriosamente o ano
de 1939.
* * *
No limiar de 1938,
quatro eram as grandes posições ideológicas em que se distribuía a humanidade:
o catolicismo, o liberalismo, o comunismo e o nazismo. Evidentemente, entre
estes quatro pontos cardeais do pensamento contemporâneo, existiam tendências
intermediárias. Mas estas tendências, além de intermediárias, eram provisórias
por sua própria natureza. Representavam apenas uma etapa da evolução
intelectual para uma daquelas quatro posições nítidas e definitivas. E, por
isto mesmo, desempenhavam um papel secundário no levantamento topográfico das
ideologias de nosso século.
Se, porém, estas
posições intermediárias eram real e doutrinariamente secundárias, na aparência
lhes cabia um papel preponderante, ou ao menos muito importante, sobre cujo
valor autêntico inúmeros observadores se deixaram iludir.
Entre essas posições
intermediárias, vem primeiramente aquilo que, errônea e até blasfematoriamente,
se convencionou chamar “cristianismo”. Evidentemente, no sentido próprio da
palavra, o cristianismo é só um: a doutrina pregada por Nosso Senhor Jesus
Cristo. Nós, católicos, sabemos, pela graça de Deus, que esta doutrina só se
conservou íntegra e completa dentro da Santa Igreja. E, portanto, conhecemos
com a máxima e mais absoluta certeza que todas as doutrinas de inspiração
aparentemente cristã, que se encontram fora da Igreja, são na realidade
falsificações mais ou menos parecidas com o original, conforme o caso, mas que
em nenhuma hipótese passam de falsificações.
Não é isto, entretanto,
que entendem os que não são católicos... e infelizmente um número não pequeno
de católicos, esquecidos dos ensinamentos da Santa Igreja de Deus. E por todos
os países protestantes, bem como em grande número de países católicos, vicejou
um certo “cristianismo” superconfessional, súmula de
princípios comuns a todas as religiões que se dizem cristãs, em nome dos quais
se pretendeu reformar a humanidade. Quanto, em 1937, na Europa e na América, se
escreveu sobre esse “cristianismo” e sobre uma pretensa “civilização cristã”
não católica, dele decorrente, é inútil lembrá-lo. Foi uma manobra confusionista, intencional ou não, que preocupava muito os
espíritos no início do ano passado.
No meio dessa confusão,
imensa confusão doutrinária, havia uma dupla realidade psicológica: debaixo
desse manto elástico, muitos espíritos convictos da verdade infalível e
integral, que está na Igreja, escorregaram pela rampa abaixo, transpondo os
limites da ortodoxia e caindo em pleno indiferentismo religioso, quando não em
um anticlericalismo rubro; por outro lado, certos
espíritos, em número infelizmente muito menor, evoluíram dentro do pântano
desta confusão, até chegar ao catolicismo completo (o pleonasmo se impõe) até o
qual se elevaram, repudiando definitivamente a ambigüidade de sua primitiva
posição.
Neste campo, portanto, a
marcha dos espíritos dúbios, emigrando das posições instáveis e transitórias
para as radicais e definidas, foi uma característica que se acentuou em 1938, a
tal ponto que já podemos discernir hoje a falência do movimento que poderíamos
chamar pan-cristão.
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Se isto se deu quanto à
primeira das posições intelectuais a que nos referimos, isto é, o catolicismo,
o mesmo se deu também em relação à outra posição, isto é, o comunismo.
Se há uma doutrina de
contornos doutrinários imprecisos, é a da esquerda. Basta consultar, para isto,
a nomenclatura dos partidos da esquerda francesa, para se ter do fato uma idéia
nítida. Radicais, radicais socialistas, socialistas “tout court”, republicanos extremados, SFIO
etc., tudo isto, em última análise, vem a ser esquerda. E o abismo para o qual
escorriam estas múltiplas tendências ideológicas era o comunismo.
Na França, como por toda a parte, as esquerdas intermediárias, socialistas,
radicais etc., se mostram cada vez mais comunistas, a tal ponto que nunca, em
toda a história do socialismo, este caminhou tão aceleradamente para a extrema esquerda do que em
1938.
Disto tivemos, há poucos
dias, uma prova lúgubre no Chile. Eleito o Presidente daquela República, um conhecido agitador comunista
da Espanha para lá se dirigiu, fazendo um “meeting” de
caráter nitidamente subversivo, na presença de 80.000 ouvintes. E esse agitador
era convidado de honra do Governo para assistir à posse do Presidente eleito pelo
sufrágio triunfante de um verdadeiro “Front Populaire”.
O mesmo se verificou por
ocasião da grande greve francesa. Em suma, 1938, também no setor da esquerda,
marcou um passo avantajado para o desaparecimento das posições intermediárias.
E, graças a Deus, por
isto mesmo, foram em 1938 muito mais frágeis e menos insistentes as miseráveis
manobras tendentes a estabelecer entre comunistas e católicos uma estúpida,
contraditória, odiosa política de “main tendue”.
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Passemos da esquerda
para a direita.
Dois fenômenos
assinalaram no setor das direitas o mesmo processo evolutivo que se nota em
outros setores. Em primeiro lugar, a radicalização do nazismo; em segundo lugar, a nazificação do fascismo.
Apesar de todos os pesares,
durante todo o ano de 1938, não faltou quem procurasse baralhar os campos na
Alemanha, insinuando que “o diabo não é tão feio quanto o pintam”; que as
perseguições do nazismo não eram tão violentas nem tão sistematicamente quanto
as agências (...) assoalhavam. E que, em suma, se a Alemanha estava em crise
religiosa, em boa parte isto se devia não ao Sr. Hitler, mas aos próprios
católicos. Se estes, em lugar de reagir, tivessem tido a conduta dócil e
cordata de brancos carneirinhos, se tivessem balido
suavemente depois de cada blasfêmia do Sr. Rosenberg, o Führer - homem bom e suave - teria sentido
formigamentos em seu tenro coração. E a misericórdia, brotando de seu
dulcíssimo temperamento, teria restituído aos católicos inermes e enternecedores, um lugar suportável dentro do Reich alemão.
Tão longe foi esta
política, que o Santo Padre, já nos últimos dias de 1937, se viu na obrigação
de a estigmatizar com energia verdadeiramente sobrenatural. Mas ainda alguns
véus perduraram em certos olhos. Foi preciso que a orientação do Cardeal Initzer, tirando a prova dos 9 fora, mostrasse com clareza meridiana
o que é o nazismo.
Ao mesmo tempo, este se
manifestou cada vez mais hostil ao catolicismo. E, com isto, as últimas vendas
caíram dos olhos dos bem-intencionados. Quanto aos mal-intencionados,
precisarão, talvez, passar ainda pelo caminho de Damasco. Não sei, porém, se a
luz que iluminou Saulo e o tombo que o sacudiu, e do
qual se reergueu já transformado em Paulo, seriam suficientes para certa
gente...
* * *
Ao passo que, nos
círculos nazistas, a coloração anticatólica se torna
cada vez mais franca, nos círculos fascistas a coloração se torna cada vez mais
nazista.
O “Legionário” travou,
em 1938, uma longa e espinhosa luta contra a influência da campanha fascista
entre nós. Estamos e estaremos sempre dispostos a gritar “Viva a Itália”,
juntamente com todos aqueles que souberem, antes disto, e com o indispensável
vigor, gritar “Viva o Papa” e “Viva o Brasil”. Nestes termos, não cedemos a
ninguém a palma da italofilia. Mas não queremos, por
isto mesmo que somos amigos da Itália, confundi-la com os erros e as aberrações do fascismo.
O discurso do Santo
Padre, que estampamos em nossa primeira página, mostra perfeitamente até que
ponto tivemos razão. Ratificando nossa orientação, esse discurso é uma coroação
de todos os nossos esforços. Triste coroação, que preferíamos não ter, se com
isto pudéssemos entender que nossas apreensões quanto à Itália não são
legítimas, e que aquele glorioso e querido país não se encontra ameaçado pelas
nuvens que discernimos!
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Enquanto o socialismo
rolou para a esquerda, e o fascismo para a direita, enquanto o “pancristianismo” rolou para baixo, enquanto algumas raras almas voaram para cima, o que
sucedeu com o liberalismo?
Derreteu-se como
sorvete.
Foi este o resultado
mais claro das últimas complicações internacionais. Não é preciso ser lince
para ver que a Inglaterra e a França estão sob verdadeiras ditaduras
parlamentares disfarçadas, e que a democracia hoje em dia só vive realmente em
alguns lugares da América, onde ela descamba a olhos vistos para a esquerda.
Quanto à França e à Inglaterra,
seus grandes partidos liberais tendem resolutamente para o comunismo e o
fascismo. (...)
Enquanto todos os campos
se definem, um movimento cada vez mais nítido se processa. É o da fusão
doutrinária do nazismo com o comunismo. A nosso ver, 1939 assistirá à consumação dessa fusão. E desse conúbio monstruoso, nascerá uma corrente que será, para os
planos de satanás, o “nec plus ultra”.
Será que nos enganamos?
É possível. Em todo o caso, é o próprio “Osservatore” que tem assinalado essa
marcha do nazismo para a esquerda.
Quer dizer que todos os
erros estão escorrendo para o mesmo abismo, e que todas as forças do século se
coligam.
Contra quem?
Neste mar tormentoso,
navega a Nau mística de São Pedro. Contra ela se formam misteriosos movimentos
de onda, que degenerarão rapidamente em tempestade imensa.
Nós, porém, não tememos.
Sem desdenhar de lançar um olhar vigilante para as ondas encapeladas que
formigam de monstros misteriosos, é nas estrelas, todavia, que procuramos nosso
roteiro.