Ninguém supôs, certamente, que o
Sr. Getúlio Vargas, o político mais sinuoso e subtil do País, fosse matar a
política. No entanto, ao que parece, foi isto que aconteceu.
Até 1937, S. Ex.a era tido como perito em matéria
política, por ter conseguido alijar sucessivamente os demiurgos com que queria
o Clube 3 de Outubro, ou o elemento civil da revolução de 30, limitar sua
autoridade. Todos se lembram das proporções gigantescas com que a personalidade
do Sr. Juarez Távora assomou no cenário
da política nacional. O Sr. Getúlio Vargas docilmente, cedeu às injunções do Clube 3 de Outubro que queria elevar aos
píncaros o jovem oficial. Por isto, sentou-o no trono do vice-reinado
do Norte. Mais tarde, enquanto o Sr. Juarez Távora fazia discursos, o Sr. Getúlio Vargas serrou os pés
de seu trono de vice-rei. Fê-lo com uma serrinha tão
macia e tão fina, que o Sr. Távora nada percebeu. Só
começou a desconfiar quando, prostrado no chão, sofria as dores das contusões
do tombo. O mesmo deu-se com o Sr. João Alberto. Esse tenente queria ser interventor em São Paulo, o que
é uma outra espécie de vice-reinado. O Partido Democrático
também queria. O Sr. Getúlio Vargas, docilmente, deu o Governo a ambos. Era o
melhor meio de ser obediente. O Sr. João Alberto desembaraçou o Sr. Getúlio
Vargas dos Democráticos, e depois os democráticos e perrepistas,
unidos, desembaraçaram o Sr. Getúlio Vargas do Sr. João Alberto. Os Srs. Góes
Monteiro e Miguel Costa também pertenciam
ao Olimpo da Revolução de 30. O Sr. Getúlio Vargas lhes deu tudo quanto
quiseram. Foram subindo, subindo, e subindo tão alto, que o seu equilíbrio já
era precário. O Sr. Getúlio Vargas, com a pontinha dos dedos, no matreiro dos
empurrões, os atirou pelo abismo. O Sr. Miguel Costa revoltou-se, mas foi
preso. O General Góes Monteiro foi mais dócil. Deixou até de dar entrevistas. E
continuou, no fundo da vala comum para
onde o atirara o peteleque presidencial, a ser bom
amigo do Sr. Getúlio Vargas. Quanto aos Srs. Armando Salles, José Américo e Plinio Salgado, a historia é recente demais para que dela se fale. O
certo, porém, é que nenhum dos três ocupa a curul
presidencial para que se candidatou.
No entanto... a política tem destas! Parece que no
largo necrotério político que abriu para uso especial de suas vitimas, o Sr.
Getúlio Vargas tem poucos inimigos. Tão poucos, mesmo, que quando os
assaltantes do Palácio Guanabara, no último golpe de Estado, tentaram a derrubada de S.
Ex.a, o Sr. Getúlio Vargas, num requinte de ironia, serviu-se especialmente de
cadáveres políticos. Lá estavam pressurosos, dispostos a dar até sua última
gota de sangue pelo Presidente, os Srs. João Alberto, Tte.
Cabanas, etc., ressuscitados expressamente para se exporem à morte - a uma
morte de fato, desta vez - para conservar íntegra a pessoa do Sr. Presidente da
República, contra as balas de seus inimigos.
* * *
Muito subtil tudo isto, não há dúvida. Mas essas
façanhas são simples folguedos de horas vagas, quando comparadas com essa obra
máxima que foi, a 10 de Novembro, o sepultamento
solene de toda a política brasileira.
Nunca vi, de um lado tamanha docilidade, e do outro
tamanha habilidade.
A princípio, pensou-se que a política não tinha
morrido. Nas ruas e nos clubes, era freqüente ouvir-se que “o P.R.P. vetou fulano”, o
“PC vai reagir contra sicrano”, ou “integralismo não concorda com beltrano”. Elementos houve
que realmente “não concordaram”, e que por isto fizeram o golpe de Maio. Quanto
aos demais, acabaram se acomodando. E hoje em dia os remanescentes dos
diretórios de ambos os partidos de São Paulo, seus ex-deputados,
ex-senadores, ex-vereadores,
etc., etc., se acomodaram tanto, que nem sequer se fala mais de política nas
plagas de Piratininga. Quando muito, um ou outro
boateiro impertinente ainda solta o boato de uma demissão estrondosa. Mas
solta-o tão timidamente, tão sem convicção, tão sem eco, que se vê que é dos
últimos frutos, temporões e secos, da florada liberal-democrática.
Os antigos “fãs” da política ainda não desanimaram
de todo. Por isto, ainda fazem suas manobrinhas. Mas
estas, no que consistem? Em tomar o Cruzeiro do Sul, o avião da VASP, ou mais
economicamente o 2º [trem] noturno, e ir ao Rio a fim de distilar nos ouvidos
subtis do Sr. Getúlio Vargas alguma informação sobre o que acontece em São
Paulo, em Minas, ou no Rio Grande. E, depois, o manobrista volta
importantíssimo para seus pagos natais, dizendo que traz no bolso uma promessa
do Presidente... Mas o tempo se escoa sem novidades, as esperanças vão abandonando
uma a uma o pombal melancólico do coração, e depois acabou-se tudo.
* * *
A política, pois, francamente parece ter acabado. A
julgar pelas aparências, ao menos, a impressão é esta. E, se bem que as
aparências não sejam sempre fidedignas quando elaboradas pelos dados
artificiosos do Sr. Getúlio Vargas, tudo leva a crer que assim continuaremos.
Isto significa, em outros termos, que a máquina
política revelada ao país em 10 de Novembro vai entrar em funcionamento, o que
se demonstra pelo pleno funcionamento em que se encontra, desde logo, a mais
absolutamente essencial e vital de suas peças, que é o Poder Executivo. Porque
aí está uma verdade que ninguém pode contestar: o Poder Executivo é de tal modo
a medula do novo estado de coisas que, funcionando ele, está tudo em funcionamento
e, paralisado ele, a Constituição estaria morta. Regime constitucional, na
ordem concreta dos fatos, significa, hoje em dia, o pleno exercício do Poder
Executivo. O resto é o “hors d'oeuvre” do
menu, o molho do prato. E parece que certos manjares não se prestam mais a
serem servidos hoje com qualquer molho.
* * *
Segundo parece, o Sr. Getúlio Vargas atingiu agora,
portanto, o apogeu de sua habilidade política. A princípio, matou à prestações.
O 10 de Novembro, pelo contrário, foi uma chacina política sem exemplos na
História. De um só golpe, foram mortos todos os políticos do Brasil, e se
inaugurou um regime em cuja estrutura está que os interventores federais também
não devem ser políticos, mas elementos dóceis ao Chefe da Nação, tanto quanto
deve ser dócil qualquer burocrata que se ufane de sua disciplina
administrativa.
É esse o panorama do momento. O futuro dirá como
vai evoluir.