Legionário, No 304, 10 de julho de 1938

As duas cruzes

Quatro atos - entre vários outros - realizados por Sua Santidade Pio XI ou por seus imediatos subordinados, por ocasião da visita que efetuou a Roma o Sr. Hitler, expressam bem a sua reprovação a essa visita e à doutrina que o “Füehrer” encarna: o Papa se retira a Castelgandolfo; o “Osservatore Romano” guarda silêncio sobre a viagem do “Füehrer”; a Congregação de Seminários envia a todos os seus centros de formação sacerdotal do mundo um documento para ser estudado e que constitui mais uma condenação das teorias racistas; e por fim, no dia 4 de maio Sua Santidade, diante de um grupo de peregrinos italianos e dando, segundo suas próprias palavras, ao ato um caráter solene, disse, entre outras coisas o seguinte, cujo alcance, para quem conheça a linguagem pontifícia, nunca se poderá exagerar: “estão acontecendo coisas tristes, muito tristes, tanto junto de nós como muito longe. Por certo, figura entre elas a aparição, no dia da Santa Cruz, de outra cruz que não é em verdade a de Cristo. Não deveriam ter sido içadas em Roma. Estavam fora de lugar e de oportunidade”. Levando-se em conta as circunstâncias em que essas palavras foram pronunciadas, torna-se evidente que uma razão de força insuperável tenha levado o Sumo Pontífice a deixar de lado qualquer prudência humana e colocar-se exclusivamente na ordem sobrenatural.

E compreenda-se bem. A cruz suástica não se reduz a uma insígnia puramente política; é historicamente um símbolo religioso racial pagão e contemporaneamente é a encarnação de uma doutrina político-social que tem por base a ressurreição desse paganismo. Não é indiferente a Cristo e sim diretamente contrária a Ele.

Há quem se iluda sonhando com uma possível cristianização do nazismo; a própria substância do nacional-socialismo é incompatível com o cristianismo; inúmeros documentos o demonstraram e a encíclica “Mit Brennender Sorge” mostra claramente os pontos principais em que a discordância entre catolicismo e racismo é irremediável. Enquanto o racismo conservar a integridade de suas doutrinas, impondo nas escolas os livros de Rosenberg, combatendo as festividades cristãs e favorecendo a comemoração exclusiva das festas do paganismo germânico; enquanto se infunde na juventude o culto dos vícios opostos ao decálogo, a cruz suástica será inimiga da cruz de Cristo e o Chefe da Igreja haverá de protestar quando se arvorar aquela nessa Roma que é de Cristo.

Hitler, de origem católica, batizado dentro da Igreja, é hoje um renegado da sua fé, tal como o foi Juliano o Apóstata; as suas medidas persecutórias demonstram que ele foi e é inimigo militante da Igreja.

O pastor Freussem, que oficialmente se incorporou ao nazismo declarando que “o cristianismo se havia reduzido a uma seita sem importância” é condecorado por Hitler com a medalha Goethe; o ministro de Culto do Reich declarou que “é indesejável que católico alemão algum concorra ao Congresso Eucarístico Internacional de Budapeste”.

Aos olhos de S. S. Pio XI, o personagem que há pouco era recebido em Roma com honras excepcionais é um apóstata que emprega seu imenso poder em arrancar a fé das almas; e a sua cruz suástica é o símbolo desse paganismo militante.

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Um jornal que se destaca entre os da Península pela sua imediata vinculação com o Sr. Mussolini, o “Popolo d'Italia”, quis responder ao Santo Padre no seu número de 8 de maio.

Suas afirmações não passam de uma gratuita insolência. Entre outras coisas disse esse periódico que “não se deve falar da Cruz como de uma arma”, pois que “O Papa poderia encontrar-se em companhia de usurários, maçons ou bolchevistas, sem possibilidade de empregar esse emblema para expulsá-los dos templos de Deus”, pretendendo assim dizer que a Igreja nada pode contra estes, armada apenas com a cruz. Engana-se o articulista anônimo; há no mundo milhões de católicos que sabem não ser necessário curvar-se a um Hitler ou a um Mussolini para serem cristãos; é preciso além disso ter conceitos mais gerais e compreender que há no mundo gente honrada fora os fascistas e racistas.

Engana-se o “Popolo d'Italia” achando que o poder sobrenatural da Cruz de Cristo não é suficiente para combater o poder armado de usurários, bolchevistas, etc. Um dia Napoleão I ao ter notícia da sua excomunhão pôs-se a rir perguntando: “Acaso fará isto caírem as armas das mãos de meus soldados?” Caíram estas e Napoleão também.

A mentalidade do periodista é representativa da de muitos homens: equipara o comunismo e a Igreja como forças naturais; não compreende a índole de um nem de outra e pensa que um paganismo materialista só pode ser vencido por outro paganismo materialista. Erro imenso! Quando nós católicos estabelecemos o dilema “Roma ou Moscou”, não pensamos na Roma fascista com seu poder natural mas na Roma de Pedro, com seu poder sobrenatural; e para nós não vale mais Rosemberg que Lenine.