Legionário, No 303, 3 de julho de 1938

Aurora

Repousando em Itanhaém nestas chuvosas férias de Julho, é bem de se ver que não sinto o menor desejo de tratar de política. De per si, nos dias que correm, o assunto é... como dizer? Mal cheiroso. Em dias de férias e de repouso, ele passa a ser inabordável. E por isto ponho-o positivamente de lado. Tratemos, pois, de outro tema. Qual? Não será fácil decidir. Chove, o tempo está escuro, a praia hostil, e o ambiente desinteressante. O melhor seria dormir. Mas o jornalismo impõe obrigações inelutáveis. Terei, pois, de escrever. Então, para me vingar do mau tempo, que dá um ambiente crepuscular prematuro à sala em que escrevo, vou tratar de uma coisa exatamente oposta a este crepúsculo cinzento e desinteressante. Vou escrever sobre “aurora”. E a aurora que resolvi tomar por tema é tão esplêndida, que não haverá crepúsculo que consiga ensombreá-la com suas trevas.

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Dois mundos lutam no caos da sociedade contemporânea. Um é o mundo crepuscular de uma sociedade que caminha para o aniquilamento inexorável.

Vivemos em um período de penumbra. Dois mundos inteiramente opostos lutam um contra o outro, no caos da sociedade contemporânea. Um é o mundo crepuscular de uma sociedade que se finda. O outro é a aurora ainda tímida de um mundo que começa. A junção da aurora e do crepúsculo cria a penumbra em que vivemos. Mas o crepúsculo é uma penumbra que caminha para a escuridão total, a morte, o aniquilamento inexorável. E a aurora é a penumbra que caminha incoercivelmente para o esplendor triunfal do meio-dia. Deixemos a penumbra crepuscular na qual se afundam hoje as sociedades pagãs que vivem longe de Cristo. Tratemos apenas da aurora da nova sociedade católica que está nascendo.

Há, na Liturgia Sagrada, uma invocação que deveria ser a prece constante de todos os católicos: emitte Spiritum tuum et creabuntuur, et renovabis faciem terrae:  enviai, Senhor, o vosso Espírito, e todas as coisas serão criadas, e renovareis a face da terra.

Enquanto os nazistas e congêneres se atolam no paganismo porque pecaram contra o Espírito; enquanto os comunistas se revolvem no charco do materialismo porque blasfemaram contra o Criador; enquanto os países liberais entram em putrefação porque traíram o Cristo e sua Igreja, o Espírito Santo sopra nas mais diversas regiões do mundo, criando, pela graça, para a Fé, milhares de almas, começa realmente a “renovar a face da terra”.

Outro, é a aurora da nova sociedade católica que está nascendo esplendidamente.

Dois fatos recentes vêem comprová-lo, atestando ao mesmo tempo a invencível vitalidade da Igreja Católica. Enquanto os bascos e sudetos apostataram da fé, calcando aos pés o seu título de filhos de Deus, o Espírito Santo vai buscar no fundo das prisões da sociedade burguesa ou em pleno coração da Rússia comunista as novas pedras com que será construído o edifício da futura civilização católica.

Há dias atrás o telégrafo nos trouxe a notícia de uma espiã francesa condenada à morte por atraiçoar sua pátria durante a guerra dias antes do armistício. Esta mulher infame, sobrevindo a paz, teve a sua pena comutada para vinte anos de cadeia. No fundo do cárcere, a graça feriu-a como feriu Paulo no caminho de Damasco. Convertida, transformou-se ela em um modelo de virtudes, e, cumprida a pena, saiu diretamente da cadeia para um convento, onde foi tomar o véu de esposa do Senhor.

O outro fato é a conversão de um chefe de propaganda dos Sem Deus na Rússia, que narrou sua volta à Igreja de Cristo em um livro “L'ouragan rouge”. Conta ele que entrou em contato com a Igreja Católica através dos Padres que tinha que perseguir para servir ao governo ateu de seu país. Sua invencível constância, o heroísmo de seu ardor apostólico, a alegria entusiástica de seu martírio, comoveram profundamente o perseguidor daqueles sacerdotes que, começando a estudar o Catolicismo, acabou por fugir da Rússia e pedir ingresso na Santa Igreja de Deus. Entre outras coisas, narra ele que os sacerdotes católicos promoviam numerosas Comunhões ocultas, até de meninos arrancados às garras das organizações dos Sem-Deus, que enfrentavam o martírio para receber o Cristo Eucarístico.

Esses dois fatos, narrados neste artigo terminado às carreiras, devem servir de objeto para meditação para os que atacam a Igreja ou os que a servem com tibieza. Com eles, sem eles ou contra eles, a aurora da civilização católica se transformará em esplêndida realidade, porque Deus até das pedras sabe fazer “filhos de Abraão”. E quanto aos mornos, “vomita-os da sua boca”.