Prometi, em meu último artigo, dizer algo sobre
nossas relações com os Estados Unidos. Este assunto, evidentemente, é inseparável da doutrina
de Monroe. Não será, pois, supérfluo que consagremos a ela o artigo
de hoje, tanto mais que, feito nosso juízo sobre tal doutrina, estará
virtualmente fixada nossa atitude na questão do pan-americanismo.
A doutrina de Monroe,
geralmente conhecida através do famoso lema “a América para os americanos”,
deve ser examinada sob um duplo ponto de vista, isto é, doutrinária e
politicamente.
Vamos primeiramente à doutrina.
O que se depreende dos escritos de Monroe e dos estadistas yankees entre os quais ele fez
escola, é que todos os povos que habitam as duas Américas estão ligados entre
si por um tríplice laço, que os une na mais estreita fraternidade, fazendo
deles um grande bloco maciço, que deve resistir coeso às investidas dos
adversários estranhos ao Continente.
Foi a Providência que ligou as
duas Américas pelo istmo do Panamá. Mais foi também a Providência que quis que
esse laço fosse muito delgado.
Os laços seriam os seguintes: l) a circunstância
geográfica de habitarem todos os povos americanos no mesmo Continente; 2) a
circunstância ideológica de adotarem todos formas de governo liberais e
democráticas; 3) a analogia que se nota entre as suas respectivas evoluções
históricas desde o cativeiro político do regime colonial até a emancipação das
guerras da independência.
A meu ver, a simples enumeração destas bases já
denuncia a inconsistência da doutrina de Monroe.
Examinemos, primeiramente, o fator geográfico.
Haveria, antes de tudo, uma pergunta de ordem concreta a fazer: a configuração
geográfica de nosso Continente indicará, na realidade, que todos os povos que
nele habitam devem estar presos pelos laços os mais estreitos? É muito
contestável. A distância que separa os grandes centros urbanos de ambas as
Américas é maior do que a que separa, entre si, outros Continentes. É menor a
viagem de Marrocos à Espanha, da Tunísia à França, ou da Tripolitânia
à Itália do que de New York ao Rio de Janeiro. O
mesmo se poderia dizer da diminutíssima distância
entre a África e a Ásia no Mar Vermelho, ou entre a Ásia e a Oceania, em Singapura.
É óbvio que a América inteira constitui um só Continente. Mas convém que não
nos esqueçamos de que o traço de união que liga as duas Américas - o istmo do
Panamá - não é muito maior nem muito mais sólido do que o istmo de Suez, sem
que por isto ninguém se julgue autorizado a afirmar que a África e a Ásia devem
ter o mesmo destino e a mesma política por estarem ligadas pela língua de terra
que Ferdinand de Lesseps perfurou. Que,
finalmente, os Dardanellos que separam a Europa da
Ásia não são mais difíceis de atravessar do que o Canal do Panamá. E que, em
suma, a própria Providência que nos soldou à América do Norte pelo Panamá quis
que este laço fosse muito delgado... e portanto muito frágil.
É bem verdade que a “América é dos
americanos” e só deles?
Mas haveria objeções mais sérias a se fazer. Será
razão suficiente para que todos os povos constituam um único bloco, ideológico
e político, que eles estejam fixados em um mesmo Continente? Em que Continente
do Mundo se viu jamais empregar semelhante processo de lógica política? A
Índia, a China e a Sibéria formarão porventura um só bloco? A Alemanha e a
França também? E as populações negras e árabes da África também? Onde se viu
jamais semelhante modo de formar blocos políticos? Quem não percebe que a
vizinhança é um fator que pode tornar muito íntima a amizade, mas que concorre
também para tornar mais acirradas as inimizades; que não é ela que faz a
cordialidade, mas que a cordialidade deve ter raízes muito outras?
Como vemos, o argumento geográfico é tudo quanto se
pode imaginar de mais fútil.
* * *
E o fator ideológico? É mais fraco ainda.
Em primeiro lugar, nunca foi verdade que todos os
países americanos fossem democracias liberais de índole republicana. O Brasil
foi um Império, e nunca foi maior seu prestígio junto às repúblicas americanas
e nos próprios Estados Unidos do que sob D. Pedro II. Deixando de ser Império, e “irmanando-se” com as demais
repúblicas e republiquetas do Continente, deixou
precisamente de ser uma democracia, para ser um mandarinato
(...) que até 1930 nunca aplicou - ou quase nunca - as instituições
republicanas no Brasil. De 1930 para cá, a história é por demais recente para
ser escrita. Todas as outras repúblicas do Continente foram verdadeiras
ditaduras ou (...) ou de grupelhos militares. Garcia Moreno foi uma exceção.
Outras exceções menos radicais houve, mas foram raríssimas.
Na verdade, a democracia nunca existiu na América como forma de governo de
todos os povos. Na América Latina, quando existiu, foi com caráter excepcional
e transitório. Vemos, pois, quão frágil é esse laço.
* * *
Poder-se-ia dizer ao menos que a evolução histórica
liga todos os povos da América?
Também não. Nem todos saíram do regime colonial, e
é incontestável que nem toda a América é dos americanos. Mais ainda: é
incontestável que nem todos os americanos querem ser só da América.
Vejamos, por exemplo, o Canadá. No Canadá, não é o
barrete frígio que impera, mas a coroa britânica. O
Canadá só não é independente porque não quer. A hegemonia inglesa no Canadá tem
raízes firmíssimas, pois que se estriba na própria
vontade dos canadenses. No Canadá, não é nem a república nem o monroismo que domina. É a monarquia, e com ela a coroa
européia dos reis da Inglaterra.
Ao lado desta grande exceção, que seria suficiente
para mostrar que o fenômeno histórico da emancipação não é comum a toda a
América, outras exceções se poderiam apontar: as Honduras Britânicas, as Guianas, etc. Será certo que se a Guiana Holandesa quisesse ser
independente ela não o seria? Quando nada, é contestável que a Holanda possa mandar suas
tropas para cá, para conservar com imenso dispêndio terras que, talvez, não
valham tanto. E, no entanto, aí está a Guiana dócil ao domínio europeu e
monárquico da Rainha Guilhermina.
Os fatos como a teoria destroem,
pois, a doutrina de Monroe.
E, sem embargo disto, somos partidários de uma
larga política de entendimento continental com todas as repúblicas da América.
No próximo artigo, veremos porque.