Legionário, No 294, 1º de maio de 1938 

Laços frágeis

Prometi, em meu último artigo, dizer algo sobre nossas relações com os Estados Unidos. Este assunto, evidentemente, é inseparável da doutrina de Monroe. Não será, pois, supérfluo que consagremos a ela o artigo de hoje, tanto mais que, feito nosso juízo sobre tal doutrina, estará virtualmente fixada nossa atitude na questão do pan-americanismo.

A doutrina de Monroe, geralmente conhecida através do famoso lema “a América para os americanos”, deve ser examinada sob um duplo ponto de vista, isto é, doutrinária e politicamente.

Vamos primeiramente à doutrina.

O que se depreende dos escritos de Monroe e dos estadistas yankees entre os quais ele fez escola, é que todos os povos que habitam as duas Américas estão ligados entre si por um tríplice laço, que os une na mais estreita fraternidade, fazendo deles um grande bloco maciço, que deve resistir coeso às investidas dos adversários estranhos ao Continente.

Foi a Providência que ligou as duas Américas pelo istmo do Panamá. Mais foi também a Providência que quis que esse laço fosse muito delgado.

Os laços seriam os seguintes: l) a circunstância geográfica de habitarem todos os povos americanos no mesmo Continente; 2) a circunstância ideológica de adotarem todos formas de governo liberais e democráticas; 3) a analogia que se nota entre as suas respectivas evoluções históricas desde o cativeiro político do regime colonial até a emancipação das guerras da independência.

A meu ver, a simples enumeração destas bases já denuncia a inconsistência da doutrina de Monroe.

Examinemos, primeiramente, o fator geográfico. Haveria, antes de tudo, uma pergunta de ordem concreta a fazer: a configuração geográfica de nosso Continente indicará, na realidade, que todos os povos que nele habitam devem estar presos pelos laços os mais estreitos? É muito contestável. A distância que separa os grandes centros urbanos de ambas as Américas é maior do que a que separa, entre si, outros Continentes. É menor a viagem de Marrocos à Espanha, da Tunísia à França, ou da Tripolitânia à Itália do que de New York ao Rio de Janeiro. O mesmo se poderia dizer da diminutíssima distância entre a África e a Ásia no Mar Vermelho, ou entre a Ásia e a Oceania, em Singapura. É óbvio que a América inteira constitui um só Continente. Mas convém que não nos esqueçamos de que o traço de união que liga as duas Américas - o istmo do Panamá - não é muito maior nem muito mais sólido do que o istmo de Suez, sem que por isto ninguém se julgue autorizado a afirmar que a África e a Ásia devem ter o mesmo destino e a mesma política por estarem ligadas pela língua de terra que Ferdinand de Lesseps perfurou. Que, finalmente, os Dardanellos que separam a Europa da Ásia não são mais difíceis de atravessar do que o Canal do Panamá. E que, em suma, a própria Providência que nos soldou à América do Norte pelo Panamá quis que este laço fosse muito delgado... e portanto muito frágil.

É bem verdade que a “América é dos americanos” e só deles?

Mas haveria objeções mais sérias a se fazer. Será razão suficiente para que todos os povos constituam um único bloco, ideológico e político, que eles estejam fixados em um mesmo Continente? Em que Continente do Mundo se viu jamais empregar semelhante processo de lógica política? A Índia, a China e a Sibéria formarão porventura um só bloco? A Alemanha e a França também? E as populações negras e árabes da África também? Onde se viu jamais semelhante modo de formar blocos políticos? Quem não percebe que a vizinhança é um fator que pode tornar muito íntima a amizade, mas que concorre também para tornar mais acirradas as inimizades; que não é ela que faz a cordialidade, mas que a cordialidade deve ter raízes muito outras?

Como vemos, o argumento geográfico é tudo quanto se pode imaginar de mais fútil.

* * *

E o fator ideológico? É mais fraco ainda.

Em primeiro lugar, nunca foi verdade que todos os países americanos fossem democracias liberais de índole republicana. O Brasil foi um Império, e nunca foi maior seu prestígio junto às repúblicas americanas e nos próprios Estados Unidos do que sob D. Pedro II. Deixando de ser Império, e “irmanando-se” com as demais repúblicas e republiquetas do Continente, deixou precisamente de ser uma democracia, para ser um mandarinato (...) que até 1930 nunca aplicou - ou quase nunca - as instituições republicanas no Brasil. De 1930 para cá, a história é por demais recente para ser escrita. Todas as outras repúblicas do Continente foram verdadeiras ditaduras ou (...) ou de grupelhos militares. Garcia Moreno foi uma exceção. Outras exceções menos radicais houve, mas foram raríssimas. Na verdade, a democracia nunca existiu na América como forma de governo de todos os povos. Na América Latina, quando existiu, foi com caráter excepcional e transitório. Vemos, pois, quão frágil é esse laço.

* * *

Poder-se-ia dizer ao menos que a evolução histórica liga todos os povos da América?

Também não. Nem todos saíram do regime colonial, e é incontestável que nem toda a América é dos americanos. Mais ainda: é incontestável que nem todos os americanos querem ser só da América.

Vejamos, por exemplo, o Canadá. No Canadá, não é o barrete frígio que impera, mas a coroa britânica. O Canadá só não é independente porque não quer. A hegemonia inglesa no Canadá tem raízes firmíssimas, pois que se estriba na própria vontade dos canadenses. No Canadá, não é nem a república nem o monroismo que domina. É a monarquia, e com ela a coroa européia dos reis da Inglaterra.

Ao lado desta grande exceção, que seria suficiente para mostrar que o fenômeno histórico da emancipação não é comum a toda a América, outras exceções se poderiam apontar: as Honduras Britânicas, as Guianas, etc. Será certo que se a Guiana Holandesa quisesse ser independente ela não o seria? Quando nada, é contestável que a Holanda possa mandar suas tropas para cá, para conservar com imenso dispêndio terras que, talvez, não valham tanto. E, no entanto, aí está a Guiana dócil ao domínio europeu e monárquico da Rainha Guilhermina.

Os fatos como a teoria destroem, pois, a doutrina de Monroe.

E, sem embargo disto, somos partidários de uma larga política de entendimento continental com todas as repúblicas da América.

No próximo artigo, veremos porque.