Legionário, No 293, 24 de abril de 1938

Esclarecendo

Com uma insistência alarmante, os telegramas provenientes dos Estados Unidos nos transmitem índices da apreensão ali reinante a respeito de uma possível agressão de navios de guerra europeus ao litoral sulamericano e, muito particularmente, ao litoral brasileiro. O mais das vezes, essa apreensão se traduz em ameaças e bravatas das quais se inferiria que os Estados Unidos estão dispostos a defender energicamente o Brasil e a América do Sul contra qualquer agressão estrangeira. E esta disposição é tão enérgica... que determinará atitudes concretas de defesa, ainda que o país “defendido” não deseje contar com esse recurso.

Enquanto este assunto parece preocupar vivamente a opinião pública dos Estados Unidos, nossa imprensa, em geral, silencia a respeito, limitando-se a transmitir os telegramas em questão tão laconicamente quanto se eles dissessem respeito à integridade territorial do Man-Chu-Kuo ou do Grão Ducado do Luxemburgo.

No entanto, uma palavra de esclarecimento seria imprescindível em assunto de tão alta relevância. Por mais de uma vez, o “Legionário” já se tem manifestado a este respeito.

Fá-lo-emos hoje novamente, abordando a questão sob um novo ponto de vista. Assim, na medida do que nos é possível, teremos concorrido para elucidar um assunto que ninguém até aqui tem achado cômodo ventilar abertamente.

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Será possível um ataque de navios de guerra europeus ao litoral brasileiro?

Antes de tudo, sejamos realistas.

A que se pode reduzir, praticamente, o perigo de uma agressão estrangeira no litoral brasileiro? Esta questão não deve ser respondida com patriotadas, mas com elementos positivos de apreciação. Nossa História atesta largamente que o brasileiro é valente e idealista, e que são temerárias as iniciativas de forças estrangeiras que tentem reduzi-lo à servidão. Mas essa consideração de natureza histórica não é suficiente por mais que ela satisfaça nosso brio nacional. Também o povo polonês era animado de um patriotismo ardente, e tinha a seu serviço a dedicação de nobres corações e de inteligências lúcidas. Tudo isto, porém, não o salvou do desmembramento. Deixemos, pois, de lado os argumentos sentimentais e vamos examinar diretamente a realidade.

Parece-nos incontestável que, no momento atual, não se deve recear que uma potência estrangeira declare explícita e formalmente a guerra ao Brasil, e envie para nosso litoral seus vasos de guerra, com o fim oficialmente proclamado de estabelecer aqui uma colônia. A Alemanha, por exemplo, para levar a cabo esse cometimento, teria de descobrir inteiramente seu próprio litoral, mandando para cá o melhor de sua marinha de guerra. “O melhor de sua marinha de guerra”, dissemos, e com razão, pois que as belo naves que empreendessem a conquista do Brasil se exporiam em caminho a um ataque inopinado de outras esquadras estrangeiras, como a inglesa ou a americana. Ora, além de outros inconvenientes que essa atitude lhe traria, a Alemanha se exporia a uma declaração de guerra que a surpreendesse com suas próprias costas desprotegidas e com sua esquadra separada do mar do Norte pelo canal da Mancha o qual é intransponível em tempo de guerra, por unidades marítimas adversárias da França e da Inglaterra. Outro tanto se deveria dizer da hipótese muito menos verossímil de um ataque italiano que deixasse o litoral da península exposto à frota inglesa do Mediterrâneo, enquanto uma importante parcela da esquadra do Sr. Mussolini se encontrasse separada da pátria pelos estreitos de Suez e de Gibraltar.

Se acrescermos a estas dificuldades as outras, decorrentes da oposição unânime e encarniçada de 40 milhões de brasileiros, das dificuldades de meios de transporte, da hostilidade de nosso clima para as pessoas que a ele não estão afeiçoadas, etc., chegaremos à conclusão de que a hipótese que aventamos é, praticamente, irrealizável.

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Infelizmente, porém, o perigo não está aí.

Olhemos um pouco para a Espanha. Ninguém ignora que o povo espanhol é um dos mais tradicionais e gloriosos do Mundo. Ninguém desconhece os numerosos e célebres lances do patriotismo espanhol que, desde a conquista moura até a napoleônica, tem mantido bem alto o renome do povo espanhol.

No entanto, em 1936, sendo a Espanha uma das chaves da política européia e especialmente um dos mais importantes fatores do domínio do Mediterrâneo, conveio à Rússia, à Itália, à  Alemanha e ao bloco democrático anglo-francês disputar a hegemonia nesse país. Então, o que se fez? Todas a partes interessadas começaram a agrupar políticos espanhóis que lhes eram devotados, formando partidos ou correntes nas quais não era raramente o dinheiro estrangeiro o principal meio de progresso e realização. Os russos agitaram o sinistro espectro do comunismo. Os alemães e italianos criaram “contatos” sapientes com alguns elementos das “direitas”. A França e a Inglaterra (...) manejavam políticos centristas. O conflito foi crescendo. Arrebentou, finalmente, uma imensa revolução. E não houve remédio senão importar soldados estrangeiros que vieram resolver em território espanhol uma contenda que não tinha sido provocada exclusivamente por espanhóis, que interessava exclusivamente aos espanhóis, mas que, em última análise, não seriam os espanhóis os únicos a resolver.

A Espanha, Áustria e a Bélgica, encontraram entre seus próprios filhos quem pactuasse com o inimigo. Qual o país moderno que está livre do mesmo perigo?

Não queremos, com isto, afirmar que a magnífica e já triunfante reação dos espanhóis contra o comunismo tenha sido fruto de tropas estrangeiras. Muito pelo contrário, a revolução foi produto da indignação da alma católica da Espanha contra a investida comunista. Incontestavelmente, porém, a Alemanha e a Itália tentaram aproveitar em sentido favorável aos seus interesses essa reação, procurando constituir na Espanha um governo que fosse tutelado pelo eixo “Roma-Berlim”. Incontestavelmente, também a França, a Inglaterra e a Rússia procuraram fazer outro tanto com o governo da Espanha comunista. E tal é a miséria dos tempos em que vivemos que na Espanha, terra clássica do patriotismo ardente e cavalheiresco, houve gente que se prestasse a esses manejos, criando uma situação tão difícil e tão embaraçosa que o próprio Gal. Franco foi forçado por um imperativo do seu patriotismo, a aceitar o auxílio de tropas estrangeiras, sob pena de entregar a Espanha ao domínio odioso de Moscou.

Aí está uma dura lição. A da Áustria é outra. Não houve em Viena, sede de uma das mais esplêndidas civilizações européias, um “Seyss-Inquart” que não hesitou em entregar sua Pátria aos invasores? E a Bélgica, a Bélgica do Cardeal Mercier e do Rei Alberto, a Bélgica que resistiu tão heroicamente em 1914, não teve ela um Senador que, há dias atrás, propôs a cessão gratuita de trechos de território belga à Alemanha?

São esses os tempos tristes que vivemos. Sejamos realistas: o Brasil não escapou à degenerescência geral. E assim como já houve em Novembro de 35 brasileiros de alma bastante vil para se venderem à Rússia, provável é que não faltassem outros que se vendessem a outras potências.

Concretamente, pois, o que significam os temores norte-americanos? Que uma potência estrangeira consiga perturbar a tal ponto a política brasileira que chegue a levantar uma grande sublevação contra o atual governo, sublevação essa que teria como conseqüência o desembarque de tropas de algum “eixo” para auxiliar os revolucionários. Ou que, por meios pacíficos, o governo fosse conduzido a gravitar em torno de qualquer “eixo”, com prejuízo dos interesses norte-americanos na América do Sul.

Dir-se-á, talvez, que é utópico pensar que uma revolução eventualmente deflagrada no Brasil fosse auxiliada por estrangeiros. Não consideramos provado que qualquer movimento armado que até aqui se tenha tentado com exceção do de 1935 estivesse sendo subvencionado por estrangeiros. Isso não implica, porém, em negarmos a possibilidade de fornecimento de armas, de dinheiro, de remédios, etc., por uma potência estrangeira a eventuais revolucionários brasileiros. Esses fornecimentos redundariam finalmente em um fornecimento de homens. E, então, os brasileiros poderiam dizer, como Kosciusco, o seu triste e doloroso “finis Poloniae”.

Compreende-se, pois, que o perigo que preocupa os norte-americanos não é nem quimérico, nem remoto, nem irreal.

Mas até que ponto nos convém, para conjurar esse perigo, a insistente aplicação da doutrina de Monroe?

É o que, em outro artigo, veremos.