Em geral, os católicos supõem que, inscrita na
Constituição Federal a proibição do divórcio, ficou a indissolubilidade do vínculo conjugal abrigada
por uma espessa muralha chinesa, atrás da qual podem eles dormir em paz o sono
da inocência, solidamente protegidos contra todas as tentativas de dissolução
da família.
Entretanto, a verdade é muito outra.
Certamente, em nossas leis não se admite o
divórcio. Oficialmente, portanto, qualquer brasileiro que se case validamente
está casado para a vida inteira, exceto se morrer seu cônjuge. Mas a fraude,
que tem a seu serviço, muito freqüentemente, soldados mais hábeis do que os
filhos da Luz, conseguiu iludir o rigor da legislação vigente e abrir, na
muralha chinesa da constituição de 1934, alguns rombos apreciáveis, através dos
quais escapam às malhas do vínculo conjugal quantos trânsfugas queiram.
O artificio de que a fraude se serviu não é novo.
Data, mesmo, de antes de 1934. Consiste ele em promover a anulação dos
casamentos que já não agradam aos cônjuges. Feita a anulação, fica cada qual
com o direito de contrair novas núpcias, levando consigo o dinheiro com que
entrou para a constituição do patrimônio da família dissolvida. E, com isto,
fica profundamente violada a lei brasileira, que proíbe a dissolução do
casamento para a realização de outro, estando ainda vivos ambos os cônjuges.
Com freqüência demasiadamente grande, portanto, “anulação de casamento” não tem no
Brasil outro significado senão “divórcio
a vínculo”. Para conseguir esse “beneficio”,
não é necessária muita habilidade. Basta dispor de um advogado chicanista e de meia dúzia de testemunhas sem idoneidade e
sem honra, e o negócio se realiza normalmente. E todos sabem que, infelizmente,
nem uma nem outra coisa é difícil de encontrar.
* * *
Alguém dirá que estamos assacando uma injúria
contra o Poder Judiciário, e que nada nos autoriza a supor que a magistratura
brasileira tenha qualquer forma de conivência com as escandalosas anulações que
denunciamos.
De modo geral, é verdade que a Magistratura é
inocente quanto ao que se passa. A Constituição de 1934 aboliu radicalmente
muitos dos abusos a que se prestavam certos juizes do interior do Estado nesta
matéria melindrosíssima. Antes da Constituição, os
cônjuges que quisessem anular o respectivo casamento se dirigiam a certos
juizes do interior, já muito conhecidos nos círculos forenses, os quais,
mediante uma gratificação “compensatória”, declaravam nulo o casamento. E estava
acabado o processo, com a “libertação”
dos cônjuges.
A Constituição de 1934 determinou, porém, muito
sabiamente que todas as sentenças dos Juizes de Direito sobre anulação de
casamento só poderiam produzir efeitos jurídicos depois de revistas pela Corte
de Apelação. E, com isto, cessaram quase todos os abusos de que era culpado o
Poder Judiciário.
Mas a chicana não se desarmou. E as anulações de
casamento escandalosas continuam a se processar em larga escala em certos
círculos sociais.
A culpa é de nossas leis. Portanto, é dos homens
que as fizeram... e dos católicos que, sendo legisladores, não trataram de as
reformar.
Não dispomos do espaço necessário para descrever
todos os abusos que continuam a ser feitos nesta matéria. Mas a menção do mais
comum dentre eles será suficiente para mostrar aos leitores a facilidade com
que se continua a anular casamentos entre nós.
Em geral, a esposa que deseja libertar-se de seu
marido põe-se de acordo com este, para anular o casamento. Feito este primeiro
passo, ela obtém de seus pais a afirmação, perante o juiz, de que obrigaram-na
a casar-se. Alguns criados da casa, gordamente
remunerados, confirmam o fato perante o juiz. O marido também confirma.
Apresentado o número legal das testemunhas, o juiz pronuncia a anulação. E a
Corte de Apelação nada pode opor à sentença.
Qual o remédio para isto? A ação do curador do
vínculo. O curador do vínculo é um advogado que dever ser nomeado pelo juiz, em
todos os processos de anulação de casamento, para investigar todas as possíveis
fraudes introduzidas pela parte. Considerando que as anulações fraudulentas são
contrárias aos interesses da Moral e da prole, a Lei instituiu essa figura de
defensor dos princípios e dos interesses fundamentais da família. Para dar cabo
de sua tarefa, deve ele ser um profissional atiladíssimo,
um especialista de grande valor, capaz de desmascarar a chicana nas suas mais
hábeis manobras, e de anular, com seu saber e sua perspicácia, todos os
atentados desfechados contra a Lei pelos defraudadores do vínculo conjugal.
Entretanto, a experiência tem mostrado que os
curadores do vínculo são, em geral, advogados novatos, que o juiz nomeia para
lhes dar a oportunidade de exercerem sua profissão. Enquanto há curadores de
órfãos e de massas falidas, que são funcionários efetivos e especializados ao
caso, o curador do vínculo, pelo contrário, é nomeado “ad hoc”, pelo
juiz. Só funciona em um processo. Não é um especialista. É muito mal remunerado
por seu serviço. E, em geral, acaba inimizado com os cônjuges, caso cumpra
realmente seu dever.
As nossas leis descuram, pois, da solidez do
vínculo conjugal. E, por isto, principalmente na nossa sociedade mais rica,
onde a abundância do dinheiro facilita as chicanas, as anulações se vão
tornando cada vez mais escandalosas.
Qual a conseqüência disto? Introduzido de fato o
divórcio na chamada “alta sociedade”,
ele se irradia para as camadas inferiores, pelo prestígio da classe em que se
está radicando. Dentro de algum tempo, a repulsa geral contra o divórcio estará
muito diminuída. E será muito mais difícil manter sua proibição em nossas leis.
Urge, pois, reformar nossas leis.
As reformas não seriam difíceis. Bastaria impor
pena de cadeia, com denúncia ex-oficio pelo próprio
Juiz, aos que se afirmassem responsáveis pela coação, e às testemunhas que
declarassem ter assistido a essa coação sem denunciá-la, para que as
testemunhas falsas desaparecessem. Poder-se-ia acrescentar a isto o confisco
dos bens dos culpados. Um curador vitalício, largamente pago, e escolhidos
entre os mais hábeis profissionais, velaria pela aplicação da lei. E estaria
tudo arranjado.
Estaria... se nossos legisladores quisessem. Mas
onde estão os que se preocupam com isto?