Legionário, N.º 248-2, 13 de junho de 1937

Rombos na muralha Chinesa

Em geral, os católicos supõem que, inscrita na Constituição Federal a proibição do divórcio, ficou a indissolubilidade do vínculo conjugal abrigada por uma espessa muralha chinesa, atrás da qual podem eles dormir em paz o sono da inocência, solidamente protegidos contra todas as tentativas de dissolução da família.

Entretanto, a verdade é muito outra.

Certamente, em nossas leis não se admite o divórcio. Oficialmente, portanto, qualquer brasileiro que se case validamente está casado para a vida inteira, exceto se morrer seu cônjuge. Mas a fraude, que tem a seu serviço, muito freqüentemente, soldados mais hábeis do que os filhos da Luz, conseguiu iludir o rigor da legislação vigente e abrir, na muralha chinesa da constituição de 1934, alguns rombos apreciáveis, através dos quais escapam às malhas do vínculo conjugal quantos trânsfugas queiram.

O artificio de que a fraude se serviu não é novo. Data, mesmo, de antes de 1934. Consiste ele em promover a anulação dos casamentos que já não agradam aos cônjuges. Feita a anulação, fica cada qual com o direito de contrair novas núpcias, levando consigo o dinheiro com que entrou para a constituição do patrimônio da família dissolvida. E, com isto, fica profundamente violada a lei brasileira, que proíbe a dissolução do casamento para a realização de outro, estando ainda vivos ambos os cônjuges.

Com freqüência demasiadamente grande, portanto, “anulação de casamento” não tem no Brasil outro significado senão “divórcio a vínculo”. Para conseguir esse “beneficio”, não é necessária muita habilidade. Basta dispor de um advogado chicanista e de meia dúzia de testemunhas sem idoneidade e sem honra, e o negócio se realiza normalmente. E todos sabem que, infelizmente, nem uma nem outra coisa é difícil de encontrar.

* * *

Alguém dirá que estamos assacando uma injúria contra o Poder Judiciário, e que nada nos autoriza a supor que a magistratura brasileira tenha qualquer forma de conivência com as escandalosas anulações que denunciamos.

De modo geral, é verdade que a Magistratura é inocente quanto ao que se passa. A Constituição de 1934 aboliu radicalmente muitos dos abusos a que se prestavam certos juizes do interior do Estado nesta matéria melindrosíssima. Antes da Constituição, os cônjuges que quisessem anular o respectivo casamento se dirigiam a certos juizes do interior, já muito conhecidos nos círculos forenses, os quais, mediante uma gratificação compensatória”, declaravam nulo o casamento. E estava acabado o processo, com a “libertação” dos cônjuges.

A Constituição de 1934 determinou, porém, muito sabiamente que todas as sentenças dos Juizes de Direito sobre anulação de casamento só poderiam produzir efeitos jurídicos depois de revistas pela Corte de Apelação. E, com isto, cessaram quase todos os abusos de que era culpado o Poder Judiciário.

Mas a chicana não se desarmou. E as anulações de casamento escandalosas continuam a se processar em larga escala em certos círculos sociais.

A culpa é de nossas leis. Portanto, é dos homens que as fizeram... e dos católicos que, sendo legisladores, não trataram de as reformar.

Não dispomos do espaço necessário para descrever todos os abusos que continuam a ser feitos nesta matéria. Mas a menção do mais comum dentre eles será suficiente para mostrar aos leitores a facilidade com que se continua a anular casamentos entre nós.

Em geral, a esposa que deseja libertar-se de seu marido põe-se de acordo com este, para anular o casamento. Feito este primeiro passo, ela obtém de seus pais a afirmação, perante o juiz, de que obrigaram-na a casar-se. Alguns criados da casa, gordamente remunerados, confirmam o fato perante o juiz. O marido também confirma. Apresentado o número legal das testemunhas, o juiz pronuncia a anulação. E a Corte de Apelação nada pode opor à sentença.

Qual o remédio para isto? A ação do curador do vínculo. O curador do vínculo é um advogado que dever ser nomeado pelo juiz, em todos os processos de anulação de casamento, para investigar todas as possíveis fraudes introduzidas pela parte. Considerando que as anulações fraudulentas são contrárias aos interesses da Moral e da prole, a Lei instituiu essa figura de defensor dos princípios e dos interesses fundamentais da família. Para dar cabo de sua tarefa, deve ele ser um profissional atiladíssimo, um especialista de grande valor, capaz de desmascarar a chicana nas suas mais hábeis manobras, e de anular, com seu saber e sua perspicácia, todos os atentados desfechados contra a Lei pelos defraudadores do vínculo conjugal.

Entretanto, a experiência tem mostrado que os curadores do vínculo são, em geral, advogados novatos, que o juiz nomeia para lhes dar a oportunidade de exercerem sua profissão. Enquanto há curadores de órfãos e de massas falidas, que são funcionários efetivos e especializados ao caso, o curador do vínculo, pelo contrário, é nomeado ad hoc, pelo juiz. Só funciona em um processo. Não é um especialista. É muito mal remunerado por seu serviço. E, em geral, acaba inimizado com os cônjuges, caso cumpra realmente seu dever.

As nossas leis descuram, pois, da solidez do vínculo conjugal. E, por isto, principalmente na nossa sociedade mais rica, onde a abundância do dinheiro facilita as chicanas, as anulações se vão tornando cada vez mais escandalosas.

Qual a conseqüência disto? Introduzido de fato o divórcio na chamada “alta sociedade”, ele se irradia para as camadas inferiores, pelo prestígio da classe em que se está radicando. Dentro de algum tempo, a repulsa geral contra o divórcio estará muito diminuída. E será muito mais difícil manter sua proibição em nossas leis.

Urge, pois, reformar nossas leis.

As reformas não seriam difíceis. Bastaria impor pena de cadeia, com denúncia ex-oficio pelo próprio Juiz, aos que se afirmassem responsáveis pela coação, e às testemunhas que declarassem ter assistido a essa coação sem denunciá-la, para que as testemunhas falsas desaparecessem. Poder-se-ia acrescentar a isto o confisco dos bens dos culpados. Um curador vitalício, largamente pago, e escolhidos entre os mais hábeis profissionais, velaria pela aplicação da lei. E estaria tudo arranjado.

Estaria... se nossos legisladores quisessem. Mas onde estão os que se preocupam com isto?