Legionário, N.º 234, 7 de março de 1937

Barrabás em liberdade

Um comunicado da Secretaria da Segurança, que inserimos em outra seção desta folha, informa a opinião pública sobre o destino dos comunistas presos por ocasião da mazorca de 1935. Por esse comunicado, verificamos que grande número dos supostos revolucionários tem sido restituído à liberdade, e que há toda a probabilidade de que, em virtude de futuras sentenças judiciárias, um número ainda maior de pessoas venha a ser dispensada do estágio obrigatório no Presídio do Paraíso.

Esse fato não é peculiar a São Paulo. Reflete ele uma linha de conduta adotada no Brasil inteiro a partir de dezembro de 36. Até essa época, todos os rigores pareciam poucos, todas as grades fracas, todas as fechaduras insuficientes. Em dezembro de 36, apertadas certas molas políticas ou super-políticas”, a situação se transformou inteiramente. E os partidos burgueses, tanto os situacionistas quanto os oposicionistas, inauguraram uma política de tolerância que vem sendo invariavelmente seguida de então até agora.

Isto posto, dever-se-ia deduzir que o perigo comunista está em franco declínio, e que é tal o grau de imunização da opinião pública contra o vírus moscovita que todos os agentes de infeção comunista, reputados perigosos em 35, são, hoje em dia, inteiramente inofensivos e podem circular livremente pelo Brasil, sem perigo para as instituições sociais.

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Isto, entretanto, não se dá. É, ao menos, o que devemos deduzir da mensagem em que o Sr. Presidente da República pede ao Poder Legislativo a prorrogação do Estado de Guerra por 90 dias. Nessa mensagem, S. Ex.a declara, inicialmente, que o perigo comunista continua de pé, e ainda se conserva tão forte que não se pode, sem imprudência, restabelecer as garantias individuais consagradas pela Constituição de 1934.

A afirmação de S. Ex.a está de inteiro acordo com as notícias que, quase quotidianamente, os jornais nos trazem a respeito de células comunistas descobertas nos mais remotos rincões do país. Ora é em um insignificante lugarejo do litoral paulista que se descobre uma trama moscovita. Ora é em uma aldeola do Estado do Rio que a Polícia percebe atividades suspeitas. Ora, finalmente, é em algum vilarejo perdido no nosso mais fundo hinterland que se percebe a ação do dedo vermelho da III Internacional.

Sendo a propaganda comunista orientada, no mundo inteiro, com uma incontestável habilidade, é bem de se supor que os esforços da III Internacional não se hão de cifrar na doutrinação de qualquer Jacarepaguá ou qualquer faxina perdida por essa imensidão brasileira. Evidentemente, se em nossos menores lugarejos o dedo da III Internacional age com audácia e eficiência, essa audácia e essa eficiência devem ser dez vezes maior ao se tratar dos grandes centros urbanos que interessam mil vezes mais aos conspiradores subornados pela Rússia.

O perigo comunista, portanto, continua vivo e próximo. As próprias autoridades o afirmam e pedem, por isso, que o Poder Legislativo as invista de atribuições excepcionais, requeridas pela excepcionalidade do perigo.

Isto posto, como explicar a inércia, a covardia, a cumplicidade dos grandes partidos burgueses, das grandes corporações burguesas, das grandes “forças conservadoras” que parecem dormir tranqüilamente sobre o vulcão, comprazendo-se em ouvir os estalidos subterrâneos que prenunciam o próximo terremoto com a mesma volúpia com que algum viveur adormeceria ao som de qualquer berceuse de Chopin?

Há meses atrás, o Brasil viu, com assombro, que na maior parte das Câmaras Estaduais, maioria e minoria, num acordo idílico, abriam as portas das prisões aos agitadores comunistas para lhes restituir a liberdade. A respeito de tudo e a respeito de nada, brigam as facções estaduais. Sobre uma coisa, porém, não houve entre eles desacordo: a necessidade de soltar os comunistas.

Comentamos, há poucos dias, o gesto da Congregação da Faculdade de Direito da Universidade do Rio a favor dos comunistas. Esse gesto já fora precedido de outro idêntico da Congregação da Escola de Medicina da mesma Universidade.

Enquanto essas defecções se dão, o que fazem as “forças conservadoras”? O que fazem, em São Paulo, por exemplo, a Associação Comercial, a Sociedade Rural Brasileira, as Associações de Industriais, etc. etc.?

A verdade é dura de se dizer. Mas toda essa gente se desinteressa da repressão ao comunismo no Brasil como se tratasse de apagar um incêndio no planeta Marte.

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Mas há outra verdade muito mais triste de se dizer.

Compreende-se que burgueses sejam incoerentes, como se compreende que um cego esbarre por toda a parte, e um paralítico não se saiba suster sobre as próprias pernas.

Mas - e aí é que vai a nota supremamente dolorosa - o que não se compreende é que católicos malbaratem o Precioso Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo qual foram remidos.

Qual é a gente que compõe esses partidos burgueses, inertes como os cães mudos, de que nos fala o profeta Isaias?

Qual é a gente que enche, em geral, as cátedras de nossas Universidades?

Qual é a gente que ocupa a direção de nossas associações conservadoras?

Em geral, católicos, e católicos que, principalmente em vésperas de eleição, timbram em se proclamar tais.

Se os interesses econômicos, as mais sagradas preocupações patrióticas, os mais delicados sentimentos familiares não lhes ditam a menor reação, nem mesmo a Fé será capaz de estimular essa gente?

Essas almas pelas quais Nosso Senhor morreu na Cruz, e a quem ele deu o dom inestimável da Fé,  não serão capazes do menor gesto de gratidão?

Ah, como nos vem à mente, nesse tempo de quaresma, o impropério ardente que a Santa Liturgia põe nos lábios do Senhor, em uma das cerimonias da Semana Santa! As almas eleitas para a vida da graça que preferem ao Príncipe da Luz o príncipe das trevas. Nosso Senhor dirige uma queixa que, despida das imagens bíblicas, é a seguinte:

Oh! Alma que eu havia escolhido! sou eu mesmo que te tinha criado; como mudaste tua doçura em amargor, a ponto de me crucificar e de libertar Barrabás!”