As sub-correntes

 

 "O Legionário" Nº 204, 9 de agosto de 1936

 

Em nossa vida política, há um fator cuja influência ainda não foi suficientemente estudada: as sub-correntes partidárias. Para que se possa fazer uma idéia nítida do que elas sejam, é necessário falar bem claro, muito mais claro certamente, do que fala nossa imprensa diária.

Todos os partidos políticos europeus têm em seu seio diversos grupos rivais. Nem mesmo o fascismo ou o nazismo, a despeito da férrea disciplina de suas hostes, conseguem evitar a formação dessas fendas internas, que separam os diversos matizes da opinião dentro de uma mesma corrente.

A razão desse fenômeno é óbvia. Nos países de vida política organizada, os partidos ou as correntes políticas têm suas tendências e seus programas nitidamente definidos. Evidentemente, há diversas formas de se ser favorável a tais tendências ou programas. Há alguns, que aderem ao partido com toda a veemência, aceitam seus princípios na sua expressão mais radical, e preconizam os mais enérgicos meios de ação, para conquistar ou conservar o poder. Há outros, que são mais moderados no seu entusiasmo doutrinário e nos meios de ação que escolhem. Finalmente, há aqueles que aderem ao partido porque gostam de seu programa... "mas não muito". Estão sempre dispostos a uma combinação com os adversários. São inimigos decididos de todos os meios violentos. Preferem sempre interpretar o programa partidário em um sentido muito largo.

A razão dessa diferença de atitudes vem precisamente do fato de ter o programa partidário grande influência na vida política. Freqüentemente, tais dissidências nada têm a ver com homens. Ninguém se queixa da direção do partido, ou dos mandatários que este enviou ao parlamento. Se há divergências, é principalmente a diferença de interesses doutrinários ou econômicos que as provoca.

No Brasil, porém, nós todos sabemos que o programa não tem, para a generalidade dos membros de um partido, a menor influência. Se alguém perguntasse, por exemplo, aos chefes de nossos principais partidos políticos, quais os programas das correntes que eles hostilizam, penso que sentiriam dificuldade em responder.

E, no entanto, a política brasileira não escapa à formação das sub-correntes, até mesmo dentro dos partidos situacionistas.

Qual a origem dessas sub-correntes entre nós? O interesse do País? Raramente. A própria terminologia política usada nos nossos parlamentos o prova claramente. Não existe, por exemplo, no situacionismo ou na oposição de qualquer Estado do Brasil, uma corrente liberal e outra anti-liberal, uma católica e outra anticatólica, uma protecionista e outra livre cambista. As correntes não recebem nomes derivados de programas. São designadas pelos nomes de seus chefes. E isto porque é o chefe, e não o programa, que constitui a razão de ser da corrente.

Nosso P.R.P., por exemplo, está dividido em diversas correntes. Há uma corrente, que obedece aos elementos que herdaram a influência político do Sr. Ataliba Leonel. São adversários acérrimos do Sr. Getúlio Vargas, do Sr. Armando de Salles Oliveira, e de todos aqueles que "transigiram, perdoaram ou esqueceram", segundo uma frase que ficou famosa. Há outra corrente, que descende da antiga coligação. Esta, de bom grado, entraria em entendimentos com o governo. Mas, de um lado, a corrente "Ataliba Leonel" lho impede. E por outro lado, o Governo do Estado não se mostra muito desejoso de repartir com esses filhos pródigos do P.R.P., os manjares da mesa governamental. E, assim por diante, as "nuances" se vão multiplicando, à medida que os observadores tenham a paciência de entrar em exames mais minuciosos.

O Partido Constitucionalista também têm suas correntes. Em primeiro lugar, há os elementos que vieram do P.R.P., e que são o grupo "ni froid ni chaud" da Assembléia. Em perpétua ameaça de cisão, deixam-se ficar, porém, muito comodamente, em suas atuais posições. Em segundo lugar, há o elemento egresso da Federação dos Voluntários. Está mais ou menos em idênticas condições. Finalmente, vem o bloco nitidamente situacionista, que, segundo os entendidos, não é muito homogêneo, pois que se compõe por sua vez, de outras duas sub-correntes, a chamada "gente do Estado", e a "gente do Partido Democrático", que poderão ser muito chegadas uma à outra, muito parecidas, muito parentes até... mas que, em todo o caso, não são irmãs siamesas. E disto muito se queixa a "gente" do P.D. O próprio presidente do P.C., Sr. Laerte de Assumpção, não é elemento entrosado em nenhum desses grupos. Simpatizado por todos, conciliando a todos em benefício da unidade do Partido, ele tem, no entanto, seu grupo próprio, que terá, talvez, uma fraca representação na vida parlamentar, mas que se compõe de elementos do maior realce na vida de S. Paulo.

Um dos trabalhos mais delicados que atualmente se estão fazendo, consiste nos "sub-acordos" entre as "sub-correntes". Esses "sub-acordos" se firmam paralelamente aos acordos, ou aos desacordos, entre os grandes partidos. Muito secretamente, as alas moderadas de ambas as correntes costumam entrar em combinação, para orientar a seu modo a política. No entanto, as alas extremas são sempre as mais influentes. E daí provém uma série de atritos intestinos na vida política, de que, muito freqüentemente, o público ignora quase tudo.

O Estado de São Paulo não terá mais de um milhão de habitantes acostumados à leitura quotidiana dos jornais, e à observação atenta de nossa vida política. Os outros seis milhões não acompanham os fatos, e são conduzidos, como um rebanho, para destinos por eles ignorados.

Do problemático milhão de leitores de jornais, podemos afirmar que talvez uma décima parte, isto é cem mil - e reputamos a estimativa excessivamente otimista - conhece a configuração geral de nossas sub-correntes, e os mexericos da vida interna de cada partido.

Esses cem mil leitores de jornais só lêem, em geral, o que a imprensa lhes mostra. O resto, lhes é inteiramente desconhecido. Desses cem mil leitores, será talvez exagerado afirmar que mil conhecem a verdade inteira.

E é a isto, que está reduzida, no Brasil, a influência da opinião pública. Em uma população de 7 milhões, apenas um milhão lê o que se passa; apenas cem mil conseguem interpretar o que lêem, através das entrelinhas e das deduções bem feitas; e, desses cem mil, quando muito mil têm o conhecimento exato da realidade, observada diretamente, e não através da opaca peneira dos jornais.

Portanto, o que vigora entre nós, não é um regime político democrático, mas uma ordem de coisas que é uma caricatura desse regime.

Sejam os católicos amigos ou inimigos da democracia, pouco nos importa. Mas terão eles o direito de optarem por uma caricatura?