Um passeio nos bastidores
"O Legionário" Nº 203, 2 de agosto de 1936
Depois de nossa última edição, em que informamos nossos leitores sobre o andamento que vêm tendo as negociações em torno da futura sucessão do Sr. Getúlio Vargas, poucas modificações sofreu o panorama político do País.
Ocorreu, é certo, um grave acontecimento. Mas esse acontecimento era há tanto tempo previsto pelos observadores políticos, que não veio alterar sensivelmente a situação.
Realmente, a ruptura das conversações entabuladas pela oposição, para a pacificação política do País, de há muito era esperada. Conquanto já tenha perdido alguma coisa de sua atualidade o histórico dessas negociações, convém que nossos leitores o conheçam, para se poderem orientar com segurança na apreciação da luta que se vai travar.
No fundo da questão da pacificação, está a questão da sucessão presidencial. No antigo regime, a sucessão presidencial era feita a critério dos três grandes estados da Federação, isto é, São Paulo, Minas e Rio Grande do Sul. De quando em vez, eram ouvidos Pernambuco e a Bahia. E os outros Estados, eram convidados a bater palmas, quando o prato estava pronto.
Tal praxe, ao contrário do que se poderia supor à primeira vista, tinha seu lado de razoável e até de vantajoso. Um Presidente da República feito sem o apoio de um dos grandes Estados nunca poderia governar convenientemente. Não há, no Brasil, quem seja capaz de empunhar o bastão de mando do governo federal com a oposição unânime de um dos grandes Estados. Se alguém o fizesse, ficaria logo na dura contingência de empregar o mesmo bastão como látego contra o Estado oposicionista. Ora, governar o Brasil contra Minas, contra o Rio Grande ou contra São Paulo é governar o Brasil contra o Brasil, de que esses Estados são partes vitais. Assim, pois, os laboriosos entendimentos travados entre os dirigentes dos grandes Estados, para a vitória de uma candidatura apoiada sobre as três colunas mestras de nossa vida política, redundavam quase sempre, em um resultado favorável à unidade nacional, tão profundamente comprometida pelo regime federativo: evitava-se que as lutas entre os três centros de gravidade do Brasil assumissem o caráter agudo que tomou, por exemplo, na luta de 1932.
Agora, porém, quando começaram a tratar da primeira sucessão presidencial regular da chamada República Nova, os políticos de um e do outro lado das barricadas verificaram que um fator inteiramente novo, oriundo das eleições de 1934 e 1936, viria dar ao problema um aspecto quase inédito antes de 1930: nos três Estados mais importantes da República, como aliás em quase todos os outros, fortíssimas oposições faziam face aos respectivos governadores. Tais oposições preferiram votar em Belzebu para Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, a votar no Chefe do respectivo situacionismo estadual. E, assim, diversas categorias de interesses inteiramente diversos iriam se entrechocar no complicado tabuleiro da política federal. Em primeiro lugar, os interesses econômicos regionais com os da lavoura ou da indústria paulistas; da pecuária ou das empresas extratoras de minérios das Alterosas; do gado e do mate do Rio Grande. Em segundo lugar, os interesses partidários do PRP, do Partido Republicano Mineiro, da Frente Única do Rio Grande do Sul, das oposições baiana, pernambucana etc., na mais viva oposição contra o PC, o Partido Progressista de Minas, o Partido Liberal do Rio Grande etc., etc. Ainda sob outro aspecto, as rivalidades pessoais entre os Srs. Armando Sales, Benedito Valadares e Flores da Cunha. E, finalmente, as rivalidades entre os Srs. Souza Costa e Flores da Cunha; Benedito Valadares e Antônio Carlos; Armando Sales e alguns "ex-pro-homens" do PC etc.
Diante de uma situação tão tremendamente emaranhada, o Sr. Getúlio Vargas sorriu. É nos labirintos, que S. Ex.a tem o seu habitual predileto. Não sorriram assim, porém, os demais interessados na questão. E, principalmente, a fisionomia do Sr. Flores da Cunha tomou um aspecto carregado.
A vista da necessidade de esclarecer o ambiente, o fogoso governador sulino concebeu o plano de unificar o Rio Grande do Sul, repartindo com seus adversários o governo de sua terra. Abrir-se-ia assim a possibilidade de figurar toda a votação do Rio Grande, unânime, como trunfo principal de sua candidatura. Depois de trabalhosas conversações, o plano foi levado a efeito.
Então, ocorreu ao Sr. Flores da Cunha um pensamento genial. Para enfraquecer os Srs. Armando Sales e Benedito Valadares, obteria para o PRP e o PRM a participação no governo dos respectivos estados, por meio de uma pacificação imposta pelo Sr. Getúlio Vargas. Em São Paulo e em Minas, a pacificação não significaria na realidade senão uma trégua política efêmera. Associados ao poder, as atuais oposições cresceriam enormemente de importância, sem, por isto, renunciar ao intento de decapitar politicamente os respectivos governadores. Com isto, os Srs. Armando Sales e Valadares desceriam ao segundo plano da política nacional. E, assim, o Sr. Flores da Cunha apareceria no cenário, "in tempore opportuno", como o único candidato possível, à almejada sucessão do Sr. Getúlio Vargas.
Nisto tudo, o que faria o Sr. Getúlio Vargas? Ficaria anulado. Dada a fraqueza dos concorrentes do Sr. Flores da Cunha, este conquistaria a Presidência da República com o Sr. Getúlio Vargas, sem ele e até talvez contra ele. E, quando o Sr. Flores anulasse todos os seus concorrentes e encerrasse assim as suas atividades políticas, poderia ter a famosa exclamação do Cid: "la bataille cessa par faute de combatants".
O Sr. Getúlio Vargas, portanto, não se poderia prestar à pacificação... a menos que o Sr. Flores da Cunha lhe tivesse garantido a sucessão ao cargo de governador do Rio Grande. Parece, porém, que tal não foi feito. E, suavemente, mansamente, o incomparável malabarista político que é o Presidente da República, rompeu as negociações.
* * *
É esta história do famoso acordo, e do seu malogro, contada em seu traços gerais.
Mas, perguntará talvez alguém, o que tem de ver com isto o "Legionário"?
É necessário que os católicos conheçam nossos homens e nossos hábitos políticos. Se querem ser reformadores, se querem ser regeneradores, se querem ser construtores, devem conhecer o que merece reforma, regeneração, reconstrução.
Não é com outro intuito, que lhes proporcionamos esta pequena excursão, excessivamente prosaica talvez, pelos nossos bastidores políticos.