Uma lição
O "Legionário" n.º 196, 26 de abril de 1936
Sempre se aprende. Na última Sexta-Feira Santa, recebi uma excelente lição. E quero expô-la aos meus leitores.
A procissão do enterro, da paróquia de Santa Cecília, percorria lentamente o seu itinerário tradicional. Ao centro de um grande quadrilátero formado pelos Congregados, caminhavam, apoiados sobre os ombros moços, dos filhos de Maria, o esquife do Senhor Morto, e um andor sobre o qual estava Nossa Senhora das Dores. Um coro excelente, substituía com evidente vantagem a velha banda de música. Um longo e duplo cordão de Filhas de Maria, de Damas de Caridade, de membros do Apostolado da Oração e das Conferências Vicentinas, com velas na mão, completava o quadro. Nas calçadas, uma multidão em que se distinguiam sexos, idades e condições sociais das mais diversas, ajoelhava-se reverente, à passagem do esquife. Um ambiente de piedade fervorosa cercava por todos os lados o cortejo religioso. Na Rua Sebastião Pereira, a procissão encontrou-se com bondes que transitavam casualmente naquele lugar, e que ficaram com seu caminho interrompido. Todos os passageiros, sem exceção de um só, se descobriram, e muitos se ajoelharam dentro do próprio bonde, à passagem do esquife. Finalmente, quando íamos entrando na Igreja, foi tal a multidão que se apertava para ingressar no templo, que só mesmo o vigor juvenil de uma fileira de Congregados dispostos a manter a ordem a todo o transe, pôde evitar a desorganização total do cortejo... E, de mim para mim, impressionado por tanta e tão sincera piedade, eu me perguntava se é possível que um povo como este, que um anticlerical chamaria certamente de beato, venha algum dia a reeditar no Brasil os episódios sangrentos de que a Espanha, o México ou a Rússia têm sido teatro.
Por um momento, uma verdadeira onda de otimismo me invadiu. Pareceu-me que o espírito religioso do Brasil é uma muralha intransponível, diante da qual se quebrarão inevitavelmente os vagalhões da desordem religiosa e social. Que o Brasil, posto definitivamente sobre os trilhos do Catolicismo, se encaminhará com a majestade tranqüila e esmagadora de uma locomotiva para o destino glorioso que a Providência lhe reservou. Que, com mais alguns golpes de remo, a nau terá chegado ao porto da salvação. E que as nuvens escuras que toldam nossos horizontes não são outra coisa senão fantasmas, que fogem ao cheiro abençoado do incenso, ou à aspersão de água benta.
Diante do triunfo de Jesus, que me parecia tão próximo, procurei lembrar-me de outros triunfos por Ele obtidos na História, a ver se seriam maiores. E o primeiro que me veio à mente, depois do Tabor, foi, evidentemente, o do dia de Ramos.
Esta última recordação baixou a temperatura de minhas esperanças. Como não comparar a passagem do Senhor morto pelas ruas de São Paulo, com a passagem triunfal do Senhor vivo pelas ruas de Jerusalém? E como não retirar, do contraste entre o Domingo de Ramos e a Sexta-Feira Santa, uma lição aplicável ao cenário brasileiro? Confesso que esta reflexão me perturbou.
Dias depois, como um raio em céu sereno, apareceu o caso da Bahia. Não quero comentar o assunto, para provar que nada de real pode haver nas acusações levantadas contra o Primaz do Brasil.
Uma série de "erros" escandalosamente explorados pela imprensa, já vem impressionando a ingênua opinião pública.
A princípio veio a exploração maldosa do "casamento" de um Sacerdote no Rio. Depois, deu-se proporção extraordinária a um incidente entre elementos da Marinha e um Sacerdote, aliás respeitabilíssimo, do Rio Grande do Sul, que fizera declarações reputadas desairosas à raça negra. E, quase simultaneamente, depois dessa preparação de ambiente, surgem em Belo Horizonte e na Bahia dois "casos" diversos. Em Belo Horizonte, a atitude hostil de certa imprensa, que era neutra até a véspera, obrigou os católicos a tomarem atitude contra um grande diário, motivando isto um incidente de tais proporções que provocou a intervenção pessoal do Ex.mo Rev.mo Sr. Arcebispo de Belo Horizonte, que prestigiou com o seu apoio o diário católico da capital mineira. Na Bahia, uma comédia digna de um palco de ópera bufa ou de alta tragédia, envolve nas malhas de uma verdadeira perseguição incruenta, um membro do Episcopado. E que membro? Pela virtude, um dos mais respeitáveis. Pela sua cultura e eloqüência, um dos mais ilustres. Pela sua dignidade, o primeiro Arcebispo do Brasil, depois do Cardeal Dom Sebastião Leme. Não podia a ofensiva atingir mais alto, nem com mais violência. E, ao mesmo tempo em que a flecha envenenada da calúnia tentou cravar-se no titular do mais antigo Bispado do Brasil, lançou ao lodo a reputação de uma pobre religiosa desvairada e habilmente explorada por uma malta de farsantes do pior quilate.
E a conspiração do silêncio cerca, de todos os lados, e protege por todas as formas, os que intentam a ofensiva anticatólica.
"Conspiração do silêncio", dissemos. E, realmente, um silêncio impressionante cerca o assunto. Exceto os que se dizem ostensivamente anticatólicos, e que sustentam a culpabilidade do Sr. Arcebispo Primaz, e os católicos militantes, que defendem sua inocência, nem uma única voz se fez erguer na imprensa quotidiana, para defender contra a chantagem uma das maiores inteligências do Brasil. Certos jornais, férteis em fotografias de Bispos e Sacerdotes, quando se trata de elogiar reputações que ninguém contesta, se calam agora. Nos arraiais mornos dos que não são católicos nem anticatólicos, nem uma pena honesta se levanta, para defender o Arcebispo Primaz. E por que?
Porque o terreno está minado. Porque os católicos, na realidade, estão sós, e só podem contar com Deus. Porque o silêncio de nossos adversários não nos deve iludir. Há muita gente morna na aparência, que na realidade se prepara para nos agredir. Há muita brasa debaixo da cinza. Há hoje muito silêncio ambíguo, que preludia muita vaia, muito apupo, muita calúnia amanhã.
Senhor! em que terreno pisamos!