Não é Congregado senão pela metade, quem ainda não
assistiu às reuniões da Federação Mariana, realizadas mensalmente na Cúria
Metropolitana. Realmente, não pôde auscultar com segurança o coração mariano de
São Paulo, e não mediu ainda todo o ímpeto de suas pulsações fortes e quentes,
quem não conhece o forno de entusiasmo que é uma reunião da Federação Mariana.
Constantemente, o
Revmo. Pe. Irineu Cursino de Moura tem, para contar aos freqüentadores
de tais reuniões, fatos empolgantes, que são um índice bem claro do entusiasmo
que lavra no exército mariano. Ora são os Congregados de Bauru, que, sob a
ameaça do perigo comunista, rezam a Deus pedindo a graça do martírio. Ora é um
Congregado de Guaratinguetá, que derrama seu sangue para
defender a população inerme de seu torrão natal, contra as investidas da
propaganda protestante. Ora é uma Congregação nova, toda composta de militares,
que dá entrada no salão da Cúria sob os aplausos delirantes de todos os
assistentes, que erguem vivas a Nossa Senhora, ao Brasil católico, e à
cristianização do Exército Nacional. Ora é uma carta da longínqua cidade de
Borboleta (quantos nem de nome a conhecem!), relatando uma proeza mariana digna de nota. Ora, enfim, são as estatísticas, cada
vez mais promissoras, de Congregações novas, que provam que não apenas na
quantidade, mas também na qualidade, vai crescendo o exército de Nossa Senhora.
Um desses fatos, porém, que mais fundo calou no espírito,
foi a ameaça de incêndio que sofreu Momo, que a
Prefeitura entronizou na Praça Antônio Prado.
São Paulo vivera três dias de folia, durante os quais um
corso animado e frenético se estendia ao longo de nossas principais artérias.
Naquelas massas humanas em ebulição, ferviam todas as
misérias humanas. Gente feia, que procurava em vão fazer-se
bonita. Gente triste, que procurava em vão tornar-se
alegre. Gente doente, que procurava em vão dar-se ares de
saúde. Gente pobre, que procurava em vão fingir-se
de rica. Gente insípida, que procurava em vão ser engraçada.
Gente solteira fora da idade, que procurava em vão um cônjuge. Gente casada, que procurava em vão uma felicidade alheia ao
matrimônio. Todo o exército inumerável daqueles a quem falta alguma
coisa na vida, saltava pelas ruas a rir e a pular, com a ingênua e inútil
preocupação de fazer crer ao próximo na sua irreal felicidade.
Ao lado dos loucos que procuravam no Carnaval a felicidade
que o Carnaval não lhes podia dar, havia outros, ainda mais loucos, que perdiam
no Carnaval o que esse não lhe podia restituir. Gente
remediada, que deixava estourar o orçamento, para pagar o automóvel e as
fantasias. Gente feliz, que arriscava nas aventuras de
Carnaval a solidez de seu lar. Gente rica, que saía
dos corsos para as aventuras amorosas e as roletas, que são, ambas, as maiores
devoradoras de fortunas que o demônio tenha inventado. Gente saudável que
encontrou no pecado a perda da saúde... E a iluminação feérica
paga pela Prefeitura lançava uma luz tristemente esplêndida, sobre tanta
miséria.
Na quarta-feira de cinzas, a cidade dormia estafada. Almas exaustas, bolsas exaustas, corações exaustos, dívidas,
ciúmes e doenças, eram as pegadas do Carnaval em S. Paulo. E, enquanto isto, o
Satã de papelão da Praça Antônio Prado continuava a rir, a rir perfidamente, enquanto,
na madrugada nevoenta, já ninguém mais ria. Ri melhor quem ri por último... e Momo o único que ainda ria-se, de seus adoradores.
Ao longe, porém, um cântico se faz
ouvir, entoado por vozes moças. “Algum grupo carnavalesco retardado, pensa
Momo. Nada há a temer. São vozes de moços, e os moços são
presa minha”.
Mas a coluna se aproxima. Na bruma, Momo distingue moços
que ele não viu no Carnaval, e ouve estranhas e graves canções, que ele não
conhece. Em passo ritmado, a coluna sobe cantando, e Momo, certo de sua
popularidade, continua a rir. Mas os protestos começam a chover. “Abaixo o
despudor! Abaixo a desavergonha! Abaixo o carnaval!
Viva Nossa Senhora! Viva a Igreja Católica!” E punhos cerrados se dirigem
contra o boneco de papelão que, nos três dias da véspera, fora vitoriado por milhares de adoradores. Finalmente, um grito
mais categórico se ouve: “Fogo! Incendiemos o Momo! Incendiemos a luxúria! Viva
Nossa Senhora! Viva o Brasil!”.
Aterrorizado, Momo já não compreendia nada. Havia, então,
em S. Paulo, moços que já não lhe pertenceriam? Quem seria essa gente? De onde
vinha, para onde ia?
Finalmente, aproxima-se um Padre. Invariavelmente
misericordioso para com todos, o espírito cristão, na pessoa de um Jesuíta,
intervêm na defesa de Momo. Pede que o deixem em paz: é só um boneco de
papelão... e daí a algumas horas será feito pedaços
por empregados da Prefeitura, e atirado ao lixo. E foi só assim, que Momo se
salvou.
Este episódio autêntico, que se
verificou com os Congregados retirantes que, do Coração de Jesus, se dirigiam à Catedral,
onde iam receber cinzas, é bem significativo da renovação por que passamos.
Enquanto um S. Paulo cansado, endividado e esgotado, dormia no fim de uma
orgia, outro S. Paulo vigoroso e idealista se levantava, emergindo do seio da
Igreja para assaltar Momo, o carnaval, e todos os momos e carnavais perpétuos,
que se sucedem na política, nas finanças, na literatura, na vida pseudocientífica deste pobre Brasil.
Há um São Paulo novo, que a Prefeitura não auxilia a crescer, mas que se formará melhor na escola da pobreza do que na escola
perigosa das subvenções.
A Prefeitura está educando toda uma mocidade na roleta, no
vinho, no deboche. A Igreja está educando, paralelamente a esta, uma outra
mocidade, na escola da oração, da disciplina, do sacrifício, do patriotismo. Um
dia virá, em que o Brasil precisará de uma e de outra mocidade.
Havemos de ver com qual delas se arranjará, si com a de
Momo, ou com a de Maria Santíssima.