O incêndio de Momo

 

O “Legionário” n.º 193, 15-3-1936

 

Não é Congregado senão pela metade, quem ainda não assistiu às reuniões da Federação Mariana, realizadas mensalmente na Cúria Metropolitana. Realmente, não pôde auscultar com segurança o coração mariano de São Paulo, e não mediu ainda todo o ímpeto de suas pulsações fortes e quentes, quem não conhece o forno de entusiasmo que é uma reunião da Federação Mariana.

 Constantemente, o Revmo. Pe. Irineu Cursino de Moura tem, para contar aos freqüentadores de tais reuniões, fatos empolgantes, que são um índice bem claro do entusiasmo que lavra no exército mariano. Ora são os Congregados de Bauru, que, sob a ameaça do perigo comunista, rezam a Deus pedindo a graça do martírio. Ora é um Congregado de Guaratinguetá, que derrama seu sangue para defender a população inerme de seu torrão natal, contra as investidas da propaganda protestante. Ora é uma Congregação nova, toda composta de militares, que dá entrada no salão da Cúria sob os aplausos delirantes de todos os assistentes, que erguem vivas a Nossa Senhora, ao Brasil católico, e à cristianização do Exército Nacional. Ora é uma carta da longínqua cidade de Borboleta (quantos nem de nome a conhecem!), relatando uma proeza mariana digna de nota. Ora, enfim, são as estatísticas, cada vez mais promissoras, de Congregações novas, que provam que não apenas na quantidade, mas também na qualidade, vai crescendo o exército de Nossa Senhora.

Um desses fatos, porém, que mais fundo calou no espírito, foi a ameaça de incêndio que sofreu Momo, que a Prefeitura entronizou na Praça Antônio Prado.

São Paulo vivera três dias de folia, durante os quais um corso animado e frenético se estendia ao longo de nossas principais artérias.

Naquelas massas humanas em ebulição, ferviam todas as misérias humanas. Gente feia, que procurava em vão fazer-se bonita. Gente triste, que procurava em vão tornar-se alegre. Gente doente, que procurava em vão dar-se ares de saúde. Gente pobre, que procurava em vão fingir-se de rica. Gente insípida, que procurava em vão ser engraçada. Gente solteira fora da idade, que procurava em vão um cônjuge. Gente casada, que procurava em vão uma felicidade alheia ao matrimônio. Todo o exército inumerável daqueles a quem falta alguma coisa na vida, saltava pelas ruas a rir e a pular, com a ingênua e inútil preocupação de fazer crer ao próximo na sua irreal felicidade.

Ao lado dos loucos que procuravam no Carnaval a felicidade que o Carnaval não lhes podia dar, havia outros, ainda mais loucos, que perdiam no Carnaval o que esse não lhe podia restituir. Gente remediada, que deixava estourar o orçamento, para pagar o automóvel e as fantasias. Gente feliz, que arriscava nas aventuras de Carnaval a solidez de seu lar. Gente rica, que saía dos corsos para as aventuras amorosas e as roletas, que são, ambas, as maiores devoradoras de fortunas que o demônio tenha inventado. Gente saudável que encontrou no pecado a perda da saúde... E a iluminação feérica paga pela Prefeitura lançava uma luz tristemente esplêndida, sobre tanta miséria.

Na quarta-feira de cinzas, a cidade dormia estafada. Almas exaustas, bolsas exaustas, corações exaustos, dívidas, ciúmes e doenças, eram as pegadas do Carnaval em S. Paulo. E, enquanto isto, o Satã de papelão da Praça Antônio Prado continuava a rir, a rir perfidamente, enquanto, na madrugada nevoenta, já ninguém mais ria. Ri melhor quem ri por último... e Momo o único que ainda ria-se, de seus adoradores.

Ao longe, porém, um cântico se faz ouvir, entoado por vozes moças. “Algum grupo carnavalesco retardado, pensa Momo. Nada há a temer. São vozes de moços, e os moços são presa minha”.

Mas a coluna se aproxima. Na bruma, Momo distingue moços que ele não viu no Carnaval, e ouve estranhas e graves canções, que ele não conhece. Em passo ritmado, a coluna sobe cantando, e Momo, certo de sua popularidade, continua a rir. Mas os protestos começam a chover. “Abaixo o despudor! Abaixo a desavergonha! Abaixo o carnaval! Viva Nossa Senhora! Viva a Igreja Católica!” E punhos cerrados se dirigem contra o boneco de papelão que, nos três dias da véspera, fora vitoriado por milhares de adoradores. Finalmente, um grito mais categórico se ouve: “Fogo! Incendiemos o Momo! Incendiemos a luxúria! Viva Nossa Senhora! Viva o Brasil!”.

Aterrorizado, Momo já não compreendia nada. Havia, então, em S. Paulo, moços que já não lhe pertenceriam? Quem seria essa gente? De onde vinha, para onde ia?

Finalmente, aproxima-se um Padre. Invariavelmente misericordioso para com todos, o espírito cristão, na pessoa de um Jesuíta, intervêm na defesa de Momo. Pede que o deixem em paz: é só um boneco de papelão... e daí a algumas horas será feito pedaços por empregados da Prefeitura, e atirado ao lixo. E foi só assim, que Momo se salvou.

Este episódio autêntico, que se verificou com os Congregados retirantes que, do Coração de Jesus, se dirigiam à Catedral, onde iam receber cinzas, é bem significativo da renovação por que passamos. Enquanto um S. Paulo cansado, endividado e esgotado, dormia no fim de uma orgia, outro S. Paulo vigoroso e idealista se levantava, emergindo do seio da Igreja para assaltar Momo, o carnaval, e todos os momos e carnavais perpétuos, que se sucedem na política, nas finanças, na literatura, na vida pseudocientífica deste pobre Brasil.

um São Paulo novo, que a Prefeitura não auxilia a crescer, mas que se formará melhor na escola da pobreza do que na escola perigosa das subvenções.

A Prefeitura está educando toda uma mocidade na roleta, no vinho, no deboche. A Igreja está educando, paralelamente a esta, uma outra mocidade, na escola da oração, da disciplina, do sacrifício, do patriotismo. Um dia virá, em que o Brasil precisará de uma e de outra mocidade.

Havemos de ver com qual delas se arranjará, si com a de Momo, ou com a de Maria Santíssima.