Legionário, N.º 190, 2 de fevereiro de 1936

 

O discurso do Municipal

 

Julgamos de nosso estrito dever fornecer a nossos leitores um comentário tão completo quanto possível do discurso do Governador do Estado, proferido no banquete que S. Ex.a ofereceu às classes armadas.

Reservando para a nota de fundo apenas o aspecto essencial do discurso, abordamos em nossa seção À Margem dos Fatos mais de um detalhe merecedor de comentário. E, na seção intitulada Comentando”, fazemos uma declaração sobre nossa situação perante a política do País.

O pensamento central do discurso do Governador do Estado se resume nos seguintes itens:

1) O perigo comunista exige uma repressão enérgica, e o Brasil não está disposto a adormecer às portas do cataclismo, como certas democracias européias;

2) no cenário da política nacional, São Paulo está disposto a apoiar com todo o peso de seus valores políticos e sociais, a luta contra o comunismo;

3) no entanto, cumpre ponderar que qualquer alteração no regime presidencial vigente só pode ser inócua quando não inconveniente;

4) que o comunismo visa resolver um problema que tende a desaparecer espontaneamente do cenário mundial e que nunca adquiriu forma e consistência no Brasil: a saber, a hipertrofia do capitalismo, a qual está sendo abolida na maior parte dos países europeus, e que nunca existiu no Brasil;

5) que o mal é moral, e principalmente pela educação pode ser corrigido;

6) que para remediá-lo o Estado se deve apoderar da Educação, e fazer circular nesta uma forte corrente de nacionalismo;

7) que esse trabalho deve ser feito principalmente nas Universidades civis e nos cursos militares superiores;

8) que, na luta contra o comunismo, devem cooperar todas as forças sociais, máxime a Igreja, aliada natural de todos quantos defendem a civilização cristã.

Francamente, somos de opinião que as linhas mestras do discurso do Governador são excelentes.

Vejamos, por exemplo, a tese 7. Agrada-nos ouvir dos lábios  de um chefe do Executivo paulista, palavras em que se reconhece bem alto o cunho fundamentalmente católico de princípios que o comunismo visa destruir, e a necessidade que tem o Estado de apelar para a cooperação da Igreja, na defesa de instituições que interessam tanto a Religião quanto a Pátria. Egressos que somos de um regime de laicismo ferrenho, vivendo sob uma Constituição que ainda professa oficialmente o princípio da separação da Igreja e do Estado, as palavras do Governador são para nós índice seguro de uma mudança de mentalidades que prognostica dias melhores para o futuro. Realmente, cumpre notar que o Sr. Armando de Salles Oliveira foi expoente do órgão mais laicista e mais liberal de nossa terra, e que é justamente a figura mais representativa do pensamento desse órgão que proclama a catolicidade congênita da nossa civilização.

Isto posto, quanto à tese 6, devemos fazer um adendo às palavras do Sr. Governador. O nacionalismo, por si só, não basta. Terá ele salvo a Alemanha de um partido que, como o nazista, sob pretexto de combater o comunismo, estabeleceu um regime que é primo-irmão do de Moscou? Por mais nobre que seja, terá o nacionalismo virtudes suficientes para desinfetar todos os ambientes do vírus comunista? E se assim é, como se explica que os chefes da Aliança Libertadora nenhuma dificuldade sentiram em pregar o nacionalismo ao lado do comunismo, para iludir nossas massas? É certo que, para homens cultos, nacionalismo e comunismo “hurlent de se trouver ensemble”. No entanto, para a ignorância do homem da rua, nenhuma incompatibilidade existe entre uma e outra coisa, e, para o temperamento acomodatício do brasileiro será muito fácil aceitar uma forma de comunismo que, na prática senão na doutrina, se harmonize com pregações hiper-nacionalistas.

Tudo quanto signifique exaltação do sentimento nacional, encontrará nos católicos, entusiastas ardorosos. Mas é preciso ir mais longe, dirigir excelsior o pensamento. O cosmopolitismo é um mal, mas não é o mal, e o nacionalismo, sendo um remédio, não é, no entanto, o remédio.

Não se pode acorrentar o pensamento humano e obrigá-lo a trabalhar dentro de um campo limitado pelo dedo do estadista ou do filósofo. Não basta dizer ao homem, axiomaticamente, que deve ser nacionalista e, partindo deste ponto, fazê-lo deduzir um amor entranhado à pátria e um ódio veemente a todas as doutrinas que a combatem.

O homem perguntará inevitavelmente ao filósofo ou ao estadista por que motivo deve ser nacionalista e não egoísta, isto é, porque razão deve antepor aos seus, os interesses nacionais.

E, com isto, entramos em pleno campo filosófico e religioso.

Realmente, se queremos um nacionalismo sincero, devemos desejar um nacionalismo baseado em convicções profundas, alicerçado em argumentos satisfatórios, e não apenas nos entusiasmos ocasionais provocados pela audição do hino nacional ou do Porque me ufano”, de saudosa memória.

Se queremos fazer do nacionalismo a base da regeneração nacional, poderemos pretender que esta base se alicerce no terreno movediço dos sentimentos humanos? Ou iremos alicerçá-lo na rocha firme da inteligência, esteando-o com as escoras indestrutíveis da razão?

Ora, nacionalismo sem Religião é coisa impossível. Porque nacionalismo significa patriotismo. Patriotismo significa sacrifício aos interesses superiores do País.

E sacrifício ou é ato da religião, ou é tolice. Porque só um crente tem motivo suficiente para sacrificar-se pelo próximo: o amor de Deus. E só um tolo é capaz de um sacrifício por uma humanidade incapaz de gratidão na imensa maioria dos casos, quando não se indica como razão do sacrifício um motivo religioso.

O discurso do Sr. Governador representa sem dúvida um grande passo no sentido da destruição do laicismo brasileiro. Mas para que este passo seja proveitoso, é mister que seja completo.

Esperemo-lo.