Primícias de uma geração
"Legionário" n.º 90, 22 de novembro de 1931
Tenho em mãos os primeiros frutos de uma geração que, comigo, viveu a agitada vida estudantina, sentando-se nos mesmos bancos acadêmicos e abeberando-se dos ensinamentos dos mesmos mestres que eu. Trata-se do Discurso pronunciado pelo orador da turma na solenidade de colação de grau aos bacharelandos de 1931, na Faculdade de Direito, de autoria de Carlos Alberto de Carvalho Pinto, e da Coragem de vencer, de Augusto de Souza Queiroz.
Turma acadêmica saída da Faculdade meses apenas após a minha, interessa-me sobremodo a análise de sua psicologia. E, ao traçar alguns rápidos comentários em torno das duas primeiras obras que ela produziu, sinto que vibram ainda em mim os últimos ecos de minhas ruidosas discussões de estudante, travadas calorosamente sob as tradicionais arcadas do antigo claustro de São Francisco.
Poucas vezes tenho visto fotografado um estado de espírito com tanta nitidez, quanto no brilhantíssimo discurso de Carlos Alberto. E o interesse dessa fotografia aumenta, se se tomar em consideração que não se trata de um estado de espírito peculiar ao autor, mas generalizado na maioria dos elementos da elite intelectual de nossa Faculdade.
A insatisfação profunda que o século XX, com suas deficiências e suas falhas, não pode deixar de produzir em todo espírito realmente superior, aí se lê nitidamente, em palavras às vezes amargas, mas sempre justas, e nas quais a veemência da queixa não empana a lucidez notável da observação, nem diminui o alcance nacional da evolução psicológica de nossa mocidade, que o discurso revela.
É, em primeiro lugar, o individualismo, dissociador de toda a organização humana, que o autor estigmatiza em suas lacunas. Mostra o vácuo da democracia e da ideologia vã que encerra.
Lamenta, numa observação justa e profunda, todas as deficiências, talvez insanáveis, de nosso curso jurídico, verdadeiramente caótico, quando considerado sob seu ponto de vista científico. E, remontando do efeito à causa, mostra que o gerador de tais males é a desordem intelectual reinante em nossa época racionalista e cética.
Vai mais longe. Aprofundando suas considerações, atinge o mal no seu âmago: denuncia o materialismo. E em palavras vibrantes, preconiza a ressurreição do espírito, para comprimir e governar as exigências desmedidas da matéria, que estão levando à ruína nossa civilização.
A linguagem, que é muito clara e de uma elegância e correção impecável, acompanha em elevação e beleza a profundeza extraordinária dos conceitos. O leitor, seguindo enlevado o crescendo harmonioso e vibrante do autor, surpreende-se, no entanto, quando vê tão aguerrido lutador estacar subitamente, como que sem fôlego, na luminosa carreira de considerações que vinha trilhando.
Depois de apontar males, estigmatizar erros, conclui num gemido que é de toda a nossa geração, dizendo que "enquanto o egoísmo dominar o sentimento coletivo e a matéria esmagar o espírito, a civilização continuará - na dolorosa ilusão de suas suntuosidades materiais - a angustiar o indivíduo com o peso de todas as injustiças e a tortura de todos os males". Mas, num gesto de desânimo, quando se trata de indicar o remédio, exclama: "Somos uma geração a quem a necessidade de vida imprimiu a ânsia do combate, mas a ruína das ilusões arrancou o idealismo construtivo. Falta-nos a bandeira, embora não nos falte a força".
Quantas vezes, no decurso da vida acadêmica, procurei apontar a Carlos Alberto a única bandeira digna de suas mãos! Quantas vezes procurei acender em seu espírito brilhante e promissor a chama ardente de uma Fé que, quando faz verdadeiros crentes, faz apóstolos! Quantas vezes tentei - o futuro dirá se em vão - conquistá-lo para a única causa digna de defensores como ele! Ficou em suspenso meu espírito, no trecho citado, que é a parte culminante do discurso. Mas uma grande satisfação me empolgou: uma geração que procura sinceramente uma bandeira, encontra-la-á forçosamente, mais cedo ou mais tarde, aos pés do altar.
Esta bandeira que Carlos Alberto procura, empunhou-a no entanto, e vigorosamente, seu colega Augusto de Souza Queiroz.
Sua esplêndida Palestra com um grupo de rapazes, concebida em estilo elegante e simples, que visa conquistar, em vez de deslumbrar, e convencer, em vez de brilhar, é um modelo de sobriedade e clareza, canalizando idéias e conceitos nos quais reconheço a fonte única da qual possa vir a salvação do Brasil: a castidade masculina, a ridicularizadíssima, a caluniadíssima, mas a sublime castidade das gerações masculinas, que entendem que só quando sabem ser puras sabem ser fortes.
É o estandarte arvorado por uma minoria coesa da elite acadêmica. É o pensamento católico que começa a brilhar com todo o fulgor de sua integridade, sustentado por uma corrente disciplinada e vigorosa, que até aos adversários impõe, pelo desassombro e dignidade, o respeito de convicções religiosas tidas, até há pouco, como profundamente ridículas em um moço.
Não tenho palavras suficientemente calorosas para significar ao autor o apreço em que tenho sua iniciativa, procurando resolver o problema religioso, ferindo de frente o problema moral.
É certo que o aspecto intelectual da Fé é de magna importância. E o próprio Doutor Angélico, quando a define, a qualifica de rationabile obsequium. Mas o problema intelectual existe para um limitadíssimo número de intelectuais, que lutam por se desvencilhar dos sofismas da época, num conflito doloroso entre sua natureza humana, que voa para Deus, e os preconceitos do século, que os acorrentam à matéria. Vimos ainda há pouco o brado doloroso e magnífico do orador dos bacharelandos de 1931. É a luta intelectual.
Mas quantas vezes a luta da carne existe como obstáculo único entre o homem e a Fé? Afirmo categoricamente que, se os homens fossem dispensados pela Igreja do cumprimento do dever sexual, 90% de nossos ateus estariam comungando freqüentemente.
É um aspecto doloroso da chaga do século, que Carlos Alberto apontou e Augusto procurou remover, com o auxílio da ciência e da Fé. Conseguiu-o plenamente. Sua vitória foi cabal.
Quero, agora, apenas submeter às reflexões dos leitores do "Legionário", dos quais muitos talvez ainda pensem que a Faculdade é um foco de ateísmo, o seguinte fato: os dois primeiros trabalhos publicados pelos bacharelandos de 1931 foram, um de um ardoroso católico como Augusto de Souza Queiroz, e outro de um semicatólico, que tem mais Fé potencial do que atual, que é mais um futuro católico do que propriamente um católico.
Este último trabalho, insuspeito, dada a orientação religiosa do autor, é um veredictum magistral e severamente justo contra o materialismo. E, acudindo aos brados deste, o outro trabalho, de Augusto, ergue o estandarte do espírito, onde mais tem triunfado a matéria.
Verifica-se aí um processo evolutivo que se observa com toda a nitidez: os tremendos preconceitos da época, removidos pela insatisfação e pelo vácuo terrível que provocaram. E, enquanto uma grande parte da geração clama à procura do ideal, já uma elite aguerrida lhe apresenta, à guisa de estandarte, a Cruz, como penhor da salvação da humanidade decaída.
Como não se ter um raio de esperança a filtrar entre as tristezas do momento, diante de um fato tão significativo e confortante?
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