Aborto praticamente livre na Espanha Legitimação de um crime
Catolicismo, N° 417, Setembro de 1985, Ano XXXV, pag. 15-18 |
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Aborto praticamente livre na Espanha
O BOLETIM OFICIAL do Bispado de Cuenca publicou
uma pastoral de Mons. Guerra Campos, na qual, à luz da lei moral e da
doutrina da Igreja, analisa para esclarecimento dos fiéis a situação
criada pela recente sanção da Lei do Aborto na Espanha. O tema
certamente é de interesse para os leitores de "Catolicismo",
pois também no Brasil já se fala em liberalizar o aborto.
Devemos pedir insistentemente a Deus que afaste
de nossa Pátria esse flagelo, bem descrito e invectivado na substanciosa
pastoral do Bispo de Cuenca.
Reproduzimos abaixo o texto integral do
documento, extraído do jornal "El Alcazar", de Madri, que o
publicou em sua edição de 17-7-85.
Lei imoral
O Chefe de Estado e Rei da Espanha acaba de
sancionar e promulgar uma lei — aprovada nas Cortes Gerais e proposta
pelo Governo — mediante a qual fica permitido na Espanha o aborto
provocado, em determinadas situações ("Boletim Oficial do
Estado", 12 de julho de 1985, dia negro na história da Espanha).
Deste modo, apesar das advertências das mais
altas instâncias morais, consumou-se a legitimação de agressões
"contra a vida do ser humano mais indefeso e inocente"
(Episcopado Espanhol); "crime abominável" (Concílio Vaticano
II), "que nunca, em nenhum caso, se pode legitimar" (Papa João
Paulo II).
Fizemos uma exposição documentada sobre a lei
moral e a doutrina da Igreja, aplicada à situação espanhola, no Boletim
do Bispado de Cuenca, em janeiro, fevereiro e março de 1983. Não cabe
aqui reiterar as doutrinas, mas sim assinalar a gravíssima situação que
se criou, e interpelar os agressores com a força que exigem a justiça e
o sangue dos inocentes. Com a dureza implacável com que Nosso Senhor
Jesus Cristo fustigou os que se autojustificavam enquanto induziam em
erros o povo e os que escandalizavam os inocentes.
O Papa João Paulo II, falando solenemente à
Espanha e referindo-se precisamente às autoridades e a uma lei do tipo da
que agora foi promulgada, disse: "Quem negasse a defesa à pessoa
humana mais inocente e fraca, à pessoa humana já concebida, porém não
nascida, cometeria uma gravíssima violação da ordem moral". Os
poderes públicos na Espanha, contrariando a sua missão primária, negam
proteção à vida dos mais fracos. Mais ainda: facilitam com meios públicos
a ação homicida. Por isso não cabe falar só de despenalização.
Estamos ante a legalização de um crime.
Não vale invocar o pluralismo de pareceres nem
conformar-se com uma simples manifestação de opiniões, como se tudo
fosse uma amável tertúlia. Porque, segundo o ensinamento pontifício,
"a vida de uma criança prevalece sobre todas as opiniões".
Prevalece sobre todas as constituições. Prevalece, a fortiori,
sobre todas as argúcias propagandísticas. Prevalece sobre todas as
simulações diplomáticas.
Dizer que esta lei é só permissiva, e que não
obriga ninguém, é uma falácia cruel: porque é lei permissiva de uma
matança de inocentes e condena à carência de defesa as vítimas da
agressão injusta. Legitima um crime.
A restrição da lei a algumas condições não
modifica sua qualificação moral, pois em nenhum caso é permissível o
aborto voluntário. Mas além disso, o juízo moral não se restringe a
aparências formalistas. Encara o bem e o mal reais: e é notório que no
contexto social em que a lei se implanta sua projeção abortista é muito
mais ampla que o conteúdo de seu texto. A lei não funciona como expressão
de benignidade penal, mas como incentivo e justificação. A sentença do
Tribunal Constitucional colocou em evidência a omissão de garantias por
parte dos legisladores. Numerosas declarações de governantes (algumas
muito recentes, e relacionadas com a sentença mencionada) e as de
publicistas e pessoas que se jactam impunemente de promover e realizar
abortos demonstram que os interessados em aproveitar-se da lei deixam de
lado as condições "oficiais", que apenas tomam em consideração,
e acolhem a lei como uma porta para conseguir a impunidade do aborto em
muitas outras condições. O desejo de "proteção" dos
"nascituros", que a Constituição exige, está debilitado.
Destaca-se, ao contrário, a vontade de favorecer as abortantes, ampliando
alguns dos motivos para poder usá-los até como pretexto universal. Para
maior irrisão, a mesma lei autoriza a grávida a abortar, sem nenhuma das
garantias que a lei estabelece e o Tribunal Constitucional exigia (!!).
Aborto praticamente livre.
Em todo caso, a abundância de abortos
praticados, com a agravante da monstruosa utilização comercial dos
fetos, faz com que no mundo de hoje o problema moral do aborto seja
qualitativa e quantitativamente o mais grave; mais que o terrorismo: e
esta lei não contribui para remediá-lo.
Não pode cessar a oposição à lei
A oposição a outras leis cessa no momento em
que são promulgadas; elas são acatadas, mesmo que não sejam satisfatórias.
Esta, não. Depois de sua promulgação é que começa o pior, o intolerável.
Enquanto a lei durar, ela tem que ser denunciada, repudiada, e exigida a
sua revogação.
Pessoas e instituições, que mantêm ruidosas
e intermináveis batalhas em defesa de interesses de menor monta, se
mostram muito solícitas em conseguir o silêncio neste assunto. E entram
com vergonhosa cumplicidade na conspiração do silêncio. Como se se
tratasse de um episódio já terminado, que seria melhor esquecer. Mas
esse silêncio encobre uma matança de inocentes. É muito cômodo para
alguns, enquanto jorra o sangue e as crianças são esquartejadas,
pretender calar as vozes de protesto, manejando com cínica elegância de
luva branca vocábulos como "tolerância", "convivência
pacifica", "moderação", "regulamentação de uma
realidade existente". Que significa tudo isso, quando o que se faz é
autorizar e facilitar o crime, à custa dos mais fracos e inocentes? Que
sentido tem tão falso palavreado, a não ser como sintoma de uma
sociedade em decomposição? Podem ser tais palavras a reação de um
organismo sadio? Pode-se admitir a sinceridade dessa linguagem? Aceitam
que outros a utilizem, quando os que assim falam se sentem vítimas da
agressão?
É imoral cooperar na aplicação da lei
A cooperação nos abortos legalizados é
gravemente imoral. Como advertiu o Papa na Espanha, é imoral facilitar os
meios públicos e privados para dar morte às vítimas indefesas. O Estado
não tem autoridade para obrigar os médicos e enfermeiros, como também a
nenhum funcionário, a essa cooperação, à qual em consciência devem se
negar. Uma ordem do poder público nesse sentido não só seria errônea,
mas também radicalmente nula e perversa. Diante dela seria necessário
dizer com os Apóstolos: "Cumpre obedecer antes a Deus que aos
homens". O Rei diz: "Ordeno a todos os espanhóis, particulares
e autoridades, que cumpram e façam cumprir esta lei orgânica". Este
mandato, inclusive o conteúdo da lei, só exige a obediência dos poderes
judiciais quanto a não impor penas; entre outras razões, porque ficam
privados da faculdade para fazê-lo. Qualquer mandato que implicasse
cooperação seria recusável. Um Bispo espanhol, dos órgãos diretivos
da Conferência, escreveu ao ser anunciada a lei: "Não é lícito
cooperar nem na elaboração nem na promulgação nem na colocação em prática
de uma lei que vai claramente contra as normas primarias da moral
humana".
Ruína moral da sociedade
A Constituição espanhola, ao dizer que
"todos têm direito à vida", não estabelece distinções. Tal
direito tem de ser protegido. É estranho que o Tribunal Constitucional
interprete que os de uns sim, e os de outros não. E que onde a Constituição
exclui, em tempo de paz, a pena de morte para os assassinos e outros
delinqüentes, autorize o Tribunal a morte dos inocentes em certos casos.
Mas o problema não é a interpretação. O grande problema é que se a
Constituição, em sua concreta aplicação jurídica, permite dar morte a
alguns, resulta evidente que, não só os governantes, mas a própria lei
fundamental, deixam sem proteção os mais fracos e inocentes. (E a propósito:
têm algo a nos dizer os governantes, mais ou menos apoiados por clérigos,
que outrora enganaram o povo, solicitando seu voto com a segurança de que
a Constituição não permitia o aborto? E digam o que disserem, vai
impedir isso a matança que se legalizou?).
Enquanto durar esta situação, um precipício
temível ameaça os alicerces da sociedade. O Papa avisou na Espanha que,
legitimando a morte de um inocente, "mina-se o próprio fundamento da
sociedade".
Mina o fundamento. Portanto, é patente o erro
dos que tratam isto como um ponto isolado. Repudiar de modo absoluto o
aborto obriga a revisar a pregação moral sobre a estrutura da sociedade.
Obrigação que incumbe igualmente à Coroa. É contraditório aceitar
como bom um sistema que conduza legitimamente a efeitos inadmissíveis. Não
é possível, em consciência, alguém se instalar tranqüilamente nele,
sem fazer o necessário para orientá-lo e para desligar-se de
responsabilidades que não se podem compartilhar. Mas não é este o
momento de desenvolver questão de tanto alcance.
Os responsáveis deveriam, pelo menos, abrir os
olhos para ver que sua atuação mina seus próprios alicerces. E suicida.
Porque eles continuarão procurando sua própria defesa contra os
agressores. E se isto é justo em si, seria equitativo quando deixam sem
defesa os mais necessitados? Conservam alguma credibilidade os que estão
patrocinando a lei do mais forte à custa de outros, quando apelam aos
valores morais? Não perderam eles toda autoridade moral para reclamar
respeito às suas próprias vidas e para protestar contra o terrorismo? Os
terroristas aplicam aos seus interesses, em determinadas condições, o
mesmo critério moral que os legitimadores do aborto aplicam aos outros
interesses.
Agora mesmo todas as pessoas e instituições
responsáveis se coligaram na indignidade: da qual não sairão enquanto
continuar o clamor, embora sufocado, das vítimas inocentes.
É necessário ressaltar a responsabilidade dos
que repudiam como absolutamente imoral o aborto e a falta de proteção às
suas vítimas, mas contribuíram ou contribuem ainda para que os culpados
desse crime se apoiem em votos católicos. O que foi feito, em
determinados ambientes eclesiásticos, das tão propaladas "denúncia
profética", "voz dos que não têm voz", "consciência
crítica da sociedade"? Onde está João Batista, dizendo aos
poderosos: não te é lícito? Ter-se-ão tornado os profetas complacentes
cortesãos?
Não se livram de responsabilidade os que
"legitimaram" a votação da lei do aborto, qualquer que tenha
sido o sentido de seu voto. Não se negaram a participar na votação de
outra lei, por não se tornarem cúmplices da aprovação, "nem
sequer por via passiva"?
Enquanto for legal matar os que vivem nas
entranhas de suas mães, toda a Nação fica manchada: em uns, por ação
ou cumplicidade, em outros, por omissão. Fica interditada sua condição
de Pátria. Fica especialmente ferida a Coroa, tradicional amparo dos
fracos e do direito natural. É bem lamentável que esse amparo se tenha
interrompido à custa dos mais indefesos, tanto se a instituição quer e
não pode quanto se pode e não quer. Esta chaga só poderá fechar-se, e
não sem humilhação, com a revogação da lei e a repulsa dos
comportamentos homicidas. E com o saneamento estrutural a que antes
aludimos.
A lei foi promulgada no mês de julho, em que
se celebra a festa do Apóstolo Santiago, na qual a Nação espanhola faz
a seu Patrono uma das duas oferendas anuais, instituídas há mais de três
séculos, uma pelas Cortes, outra pelo Rei, suprimidas em 1931 e
restabelecidas em 1937. Pode uma nação fazer oferendas a um Apóstolo de
Cristo, e ao mesmo tempo imolar crianças no altar de Moloc? O Apóstolo São
Paulo corre ao nosso encalço clamando: "Que concórdia há entre
Cristo e Belial?", "Que acordo há entre o templo de Deus e os
ídolos?”, “Não podeis beber o cálice do Senhor e o cálice dos
demonios” (1 Cor. 10, 21 e 2 Cor. 6, 15-16).
Os católicos em sua relação com a Igreja
A posição dos católicos responsáveis pelo
aborto ante a Igreja se define em dois planos:
a) O Código de Direito Canônico, no cânon
1.398, estabelece para toda a Igreja: "Quem procura o aborto, se este
se produz, incorre em excomunhão latae sententiae" (isto é, pelo próprio
fato de cometer o delito). A excomunhão implica, entre outros efeitos, a
proibição de receber os sacramentos e de celebrá-los e a de ter
participação ministerial em qualquer ato de culto.
Dadas as condições de imputabilidade,
contraem esta excomunhão todos os que procuram, realizam, cooperam para
realizar um aborto efetivo: os que induzem a mãe, ou que providenciam ou
preparam os meios para realizá-lo, a mãe que quer ou deixa realizá-lo,
os autores físicos, os médicos e ajudantes técnicos e demais
colaboradores, os que proporcionam os meios de clínicas e outras instituições
sanitárias e econômicas. Note-se que se o aborto não se efetiva, não
se incorre na excomunhão, embora a tentativa ineficaz tenha a mesma malícia
moral.
b) Os católicos que favorecem o aborto em
postos de autoridade e de função pública, na medida em que cooperam
para a realização de um aborto concreto e efetivo, incorrem
evidentemente na mesma excomunhão. Às vezes não se poderá determinar
se a ação das autoridades recai em um aborto concreto e efetivo, ou se
se restringe a fomentar possibilidades e facilidades gerais para sua
concretização. Neste caso será duvidosa a excomunhão; mas não é
duvidosa sua tremenda responsabilidade moral, ordinariamente maior que a
dos executores, nem é duvidoso que merecem reprovação pública e penas
espirituais, embora não se contraiam automaticamente.
Certas manifestações de eclesiásticos sobre
este ponto desorientam indevidamente os fiéis, porque, embora os
enunciados sejam verdadeiros, no contexto soam necessariamente como atenuação
de responsabilidade ou como interpretação benévola de atuações que,
ao contrário, têm de ser denunciadas de acordo com sua enorme gravidade.
Três exemplos oportunos mostram como é necessário evitar equívocos:
Primeiro exemplo — Se alguém proclamasse:
"O que matar o Rei, a Rainha e a Familia Real não incorre em
excomunhão", diria uma verdade; apesar disso, todos admitiriam com
razão que esta proclamação, feita desse modo, seria imprudente, ambígua
e intolerável.
Segundo exemplo — O crime de uma mãe que,
com atos imputáveis, assassinasse todos os membros de sua família, ou o
de um médico que fizesse o mesmo com dezenas de doentes de um hospital,
ninguém dirá que é menor que o de um aborto, embora por este incorram
em excomunhão, e não por aquela matança.
Terceiro exemplo, que nos aproxima do
tratamento prático de nosso caso — O código de Direito Canônico não
estabelece pena automática para "os fiéis que pertençam a associações
maçônicas"; mas a Santa Sé declarou expressamente que
"acham-se em estado de pecado grave e não podem aproximar-se da
santa comunhão".
A autoridade da Igreja pode determinar de modos
variáveis as penas canônicas. Nenhuma autoridade da Igreja pode
modificar a culpabilidade moral nem a malícia do escândalo. As vezes se
pretende elidir as responsabilidades mais altas, como se a intervenção
dos Poderes públicos se reduzisse a fazer-se de testemunhas,
registradores ou notários da "vontade popular". Eles verão. A
Deus não se engana. O certo é que, por exemplo, o chefe de Estado, ao
promulgar a lei para os espanhóis, não diz: "Dou fé". Diz
expressamente: "Mando a todos os espanhóis que a cumpram".
Os que implantaram a lei do aborto são autores
conscientes e contumazes do que o Papa qualifica de "gravíssima
violação da ordem moral", com toda sua carga de nocividade e de escândalo
social. Vejam os católicos implicados se os atinge o cânon 915, que
exclui da comunhão os que persistem em "manifesto pecado
grave". Podem alegar algum atenuante que os livre de culpa em sua
decisiva cooperação com o mal? Existe esse atenuante? Se existir, seria
excepcionalíssimo, e, em todo caso, transitório. E pensam que os
representantes da Igreja não podem degradar seu ministério elevando a comunicatio
in sacris a mera relação social ou diplomática.
A regra geral é clara. Os católicos em cargo
público, que promovem ou facilitam com leis ou atos de governo — e em
todo caso protegem juridicamente — a prática do crime do aborto, não
poderão escapar à qualificação moral do crime do aborto, não poderão
escapar à qualificação moral de pecadores públicos. Como tais terão
de ser tratados — particularmente no uso dos Sacramentos — enquanto não
repararem segundo suas possibilidades o gravíssimo mal e escândalo que
produziram.
13 de julho de 1985 José, Bispo de Cuenca |