Plinio Corrêa de Oliveira

 

Artigos na

 "Folha de S. Paulo"

 

 

 

 

 

24 de outubro de 1986

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Jogadazinha ardilosa, cândida e risível

Tenho lido, aqui e acolá, declarações de fazendeiros de relevo em sua classe, os quais, mostrando-se embora contrários à desapropriação, por preço vil, de terras já adequadamente aproveitadas para a lavoura ou a pecuária, se manifestam entretanto genericamente favoráveis à reforma agrária.

Contradição? Não – respondem eles. E explicam que preferem designar como reforma agrária tão-só a implantação compulsória do regime de pequenos assentamentos em terras ociosas, quer pertençam estas a particulares quer ao Poder Público.

Quase tudo, nesta atitude, causa-me estranheza.

"Reforma agrária" é designação cujo sentido se veio definindo com precisão, na linguagem corrente, a partir dos remotos anos 60, nos quais teve início, em escala nacional, a batalha ideológica e política, a qual vai alcançando em nossos dias o seu auge.

Para o "homem da rua", "reforma agrária" designa hoje a imensa transformação da estrutura socioeconômica mediante a qual a lavoura e a pecuária passem do sistema de coexistência facultativa e promíscua de grandes, médias e pequenas propriedades, para um sistema novo, mercê do qual o "ager" brasileiro ficaria transformado em uma imensa e uniforme rede de "assentamentos", cujos lotes de dimensões familiares seriam trabalhados diretamente pelas famílias "assentadas", ou em regime de trabalho comunitário e autogestionário, sob a direção superior de cooperativas geridas pelo Estado. Kolkhoses? Pouco mais ou menos...

Essa total modificação da estrutura obter-se-ia – está sendo obtida! – mediante decretos do Executivo e o pagamento, ao proprietário expropriado, de uma indenização a preço vil. Um confisco, pois. E, em consequência, um grave atentado ao direito de propriedade.

Isto é, repito, o que o "homem da rua" entende atualmente por reforma agrária.

Ora, com a linguagem de um povo se dá o mesmo do que com os seus costumes. Uma e outra coisa nasce espontaneamente, organicamente, vitalmente, de circunstâncias profundamente invisceradas na realidade. E inútil é tentar modificá-las pela pressão arbitrária de uma minoria. Ou por decreto governamental. Por exemplo, a palavra "casa" tem na linguagem comum seu sentido perfeitamente definido. E será vão que uma minoria de políticos ou de mandarins da gramática queira alterá-lo, decretando que ela passe a se chamar, de trás para diante, de "asac". Ou que ela passe a designar tão exclusivamente as lojas ("Casa" Souza, "Casa" Mendes etc.) e não mais os edifícios destinados à residência de uma família.

Assim, não creio que um arbitrário "decreto" de alguns caciques rurais consiga que "reforma agrária" passe a significar, na linguagem corrente, não mais a imensa e revolucionária transformação atualmente designada por tal, mas um só tipo de transformação. Por exemplo, a desapropriação confiscatória de terras inaproveitadas, sejam elas devolutas, ou então de propriedade do Poder Público. E também de terras particulares à espera de cultivo.

Ora, este é o sentido mais restrito que certos líderes rurais imaginam possível fazer ingerir pelo público como sendo reforma agrária.

Consta-me que esse "golpe" semântico se destina, no espírito desses mandarins rurais, a certos fins de propaganda. Ele lhes proporcionaria o meio de declararem favoráveis à reforma agrária, desempenhando aos olhos dos fautores da agitação rural o papel, que supõem simpático, de líderes bonachões e concessivos, e não de defensores ferrenhos de seu direito de proprietários.

Quando se travassem polêmicas sobre a desapropriação confiscatória das terras já satisfatoriamente utilizadas pela lavoura ou pela pecuária, esses mandarins poderiam então opor-se com toda a energia à injusta medida.

Seus opositores por certo os apontariam como contraditórios, pois se haviam manifestado favoráveis à reforma agrária. E eles – os fazendeiros bonachões e concessivos – explicariam então, com um misto de esperteza e de candura, que não havia contradição na sua atitude. Pois eles tinham fabricado para "reforma agrária" um significado novo, mais restrito, e que abrangeria tão-só a expropriação de terras ditas ociosas...

E, candidamente, imaginariam fechar assim a boca aos agro-reformistas radicais.

Como se a estes últimos fosse difícil desemaranhar o laço, e mostrar ao público que esses bonachões de fachada não eram senão ardilosos fabricantes de arapucas... mal fabricadas. E como se o povo brasileiro fosse bobo, a ponto de se deixar laçar por tão ingênuo ardil.

Os neo-agro-reformistas que vão surgindo, aqui e acolá, nada lucram, pois, com o uso de sua pequena trampa e, pelo contrário, com ela perdem.

Com efeito, aos olhos do Brasil não rural, a grande força moral da classe dos fazendeiros consiste na idoneidade e na seriedade destes. Se eles se prestam a serem apanhados "com a boca na botija" a fazer uso de tal ardil, dentro em pouco as esquerdas terão voltado contra eles e a mais terrível das armas propagandísticas que é a do ridículo. E não haverá o que lhes compense esse prejuízo.

Como amigo da classe rural, na qual vejo a maior reserva moral deste pobre país em que as reservas morais são cada dia mais raras e mais débeis, fica aqui um apelo para que nossa lavoura não se deixe seduzir por esta inconsistente jogadazinha.

Minha condição de presidente do Conselho Nacional da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP) me dá um nobre título para fazer a meus amigos produtores rurais este apelo, pois que há 25 anos a TFP vem lutando – sem o menor interesse para si, como pessoalmente para mim – contra a reforma agrária socialista e confiscatória.


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