Plinio Corrêa de Oliveira
Artigos na "Folha de S. Paulo"
6 de janeiro de 1986 |
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O cego que guia outro cego
Parábola do cego que guia outro cego (Pieter Brueghel o Velho, c. 1525-1569) Janeiro e dezembro de 85 marcaram dois surpreendentes insucessos da perspicácia de nossos meios de comunicação social, no que diz respeito às tendências profundas do pensar e do querer globais do Brasil hodierno. Com efeito, em janeiro tudo se montou para que o "Rock in Rio" obtivesse um sucesso de marcar época, não só em nível nacional como internacional. Não seria possível fazer, para este efeito, mobilização mais completa dos recursos publicitários existentes no País. E, à uma, as tubas de nossa publicidade prognosticavam, para o ribombante espetáculo, uma participação popular apoteótica, quer do ponto de vista do número dos presentes, quer do entusiasmo delirante do qual se tinha certeza que eles dariam mostras. Ora, tudo isto desfechou em um fracasso exatamente tão grande quanto fora grande o triunfo esperado. Minguado foi o comparecimento, e mais minguado ainda o entusiasmo. Enquanto as mídias estavam certas de que brasileiros de todas as latitudes afluiriam ao Rio para participar pessoalmente dos momentos de supremo frenesi a que o espetáculo daria lugar, e que, a fortiori, os cariocas, naturalmente prazenteiros e folgazões, deixariam seus apartamentos e suas casas para se apinharem nos locais do "Rock in Rio", o que se passou foi bem diverso. Os brasileiros de todas as latitudes preferiram ficar no conforto de suas cidades e de seus lares. E os cariocas preferiram as macias e tranquilas delícias de seus chinelos ao frenesi "descontraído" e agitado do tão apregoado espetáculo. Qual a razão – ou as razões – desta abstenção tão inesperada? Se eu fosse otimista, imaginaria que a indignação da grande maioria dos brasileiros contra as imoralidades e as extravagâncias anunciadas para o "Rock in Rio" estava na causa do que não hesito em qualificar de feliz insucesso do espetáculo. Neste caso, entretanto, quanto estaria afastado da realidade o meu juízo! Com efeito, as grandes multidões estão exaustas de trabalhar, de penar, de ser constantemente excitadas pelas mídias para emoções paroxísticas que lotem suas horas de lazer. Elas estão exaustas de perambular com espanto no caos dos acontecimentos sem nexo do dia-a-dia religioso, cultural, político, social e econômico de nossa existência moderna. Elas querem fugir de tudo isto que as mídias lhes entrouxavam continuamente no espírito, através dos olhos como dos ouvidos. Elas querem sossego, normalidade, despreocupação. E isto as mídias lhes recusam a todo instante. Daí, pelo menos em boa parte, o insucesso. E as mídias? Pelo menos no Brasil não parecem ter aprendido a lição. Elas procedem como se vivessem num grande mito hoje em dia inteiramente vazio de conteúdo real. O "Rock in Rio" era calculado para uma multidão sôfrega de prazeres induzidos. Uma multidão efervescente de aspirações sexuais tendentes ao orgíaco. No gênero Las Vegas, digamos. De multidões fartas ad nauseam das "insípidas" alegrias próprias dos serões de outrora, em torno de uma mesa em que se servia chá de hortelã ou de camomila, e se comiam biscoitos caseiros, enquanto corria indolente uma conversinha familiar sem novidades. E as multidões, saturadas, tendiam ao extremo oposto. Pelo contrário, o que se viu agora foi o triunfo da maciota caseira sobre o "Rock in Rio". Essa imensa saturação, as mídias, retardadas espantosamente, não a previam. Transcorreu quase inteiro o ano de 85 e ninguém parece ter refletido sobre a lição. Imaginando desta vez como inteiramente real o mito marxista mais do que secular, da luta de classes, as mídias parecem ter calculado para a entrevista de Roberto D’Avila com Fidel Castro um efeito análogo ao do fósforo aceso num imenso paiol. No caso, o paiol seriam as massas de trabalhadores manuais efervescentes de furor por ainda existirem ricos na face da terra. E por isto supostamente ávidas de ouvir a pregação messiânica do líder de Sierra Maestra. Na realidade, nossas massas são tranquilas, ordeiras e de boa paz. Elas não têm ojeriza aos ricos nem à polícia. E a indignação que lhes vai na alma contra o Poder público, não é porque este mantém os direitos da grande e média propriedade, mas, pelo contrário, porque não protege a pequena propriedade e a segurança pessoal do homem comum, porque deixa as ruas entregues ao roubo impune, como aliás também à sanha sexual. Consequência: foi noticiada a exibição de Fidel Castro na TV Manchete como um programa que marcaria época na vida política do Brasil contemporâneo. O resultado? Considere o leitor o quadro abaixo, concernente a São Paulo e ao Rio, construído com dados fornecidos com louvável imparcialidade pelo Ibope, e apresentados com imparcialidade não menos louvável pela "Folha de S. Paulo" (28-12-85) e pelo "Jornal do Brasil" (27-12-85) respectivamente, quanto à audição do barbudo e verboso ditador. Em outros termos, paulistanos e cariocas desejavam uma pachorrenta noite de domingo. A TV Manchete lhes ofereceu, para essa noite, a "iguaria" revolucionária de duas horas de prosa com o "chefe" cubano. A imensa maioria das duas grandes urbes preferiu a rotina pachorrenta de espetáculos de televisão comum. Antes de tudo, é claro, porque o comunismo não desperta nelas a apetência agitada e sôfrega que as mídias imaginam. Mas também, em larga medida, porque o povo – o "povão", como em certa gíria se diz – quer que as coisas continuem em sossego, e não que se abrasem num incêndio trágico. Como se explica que assim se enganaram as mídias? Ao meu ver, porque elas têm os olhares postos prevalentemente num Brasil fictício. Isto é, o Brasil formado por uma imensa panelinha (perdoe o leitor a contradição dos termos, mas a coisa é assim: uma grande quantidade de pessoas que constitui no Brasil uma minoria proporcionadamente pequena): 1) clérigos e católicos progressistas ou "bofistas"; 2) uns tantos miliardários comunistas; 3) certos granfinos idólatras da extravagância, da pornografia sofisticada e dos imprevistos escandalosos; 4) intelectuais que imaginam soprar sempre para a esquerda a última moda, e 5) publicistas de esquerda ou em vias de se tornarem tais. Em suma, um Brasil inautêntico, pois o Brasil nem é uma panela nem é esquerdista. Mas o Brasil tanto e tanto é descrito como sendo assim, que acabam acreditando na descrição até mesmo os que, por arroubos ideológicos, acabaram fabricando o mito. Mito perigoso, na verdade. Pois não são muitos os brasileiros que relacionaram o fracasso do "Rock in Rio" com o fracasso congênere de Fidel Castro. E assim são incontáveis os que vão consentindo mais ou menos resignadamente que o Brasil vá resvalando para a esquerda porque, iludidos pelo mito, imaginam que nosso País tem na alma uma preponderância esquerdista.... que não existe! Um povo que se deixa guiar por um mito, máxime tão falso, corre o risco de ter o destino do cego guiado por outro cego, contra o qual advertiu o Divino Salvador (Mt.15,14). Nota: Os negritos são deste site. |