Plinio Corrêa de Oliveira

 

Artigos na

 "Folha de S. Paulo"

 

16 de maio de 1984

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Código: ditadura na abertura?

Vivemos ainda - e cada vez mais - sob o signo da abertura. A esta se reportam, pois, com freqüência, os comentários sobre a atualidade brasileira.

Abertura? Sim, liberdade para cada qual de pensar, de falar, de agir, de mover-se, de fazer mais ou menos tudo que bem entenda. Liberdade em contínua expansão, e, pois, de contornos indefinidos.

A muitos pareceu que, instaurada essa liberdade, estava tudo a caminho de resolver-se no País. Esqueciam-se de que as liberalizações de contornos indefinidos não criam nem consolidam nenhuma liberdade verdadeira. À medida que tendem a facultar a todos que façam quanto quiserem, essas liberalizações vão caminhando de fato para a anarquia, e daí para uma mais terrível ditadura.

Com efeito, a liberalização-indefinida se vai tornando forçosamente tumultuária, e aos poucos vê erguer-se diante de si um inimigo terrível. Esse inimigo é uma lei, não nascida dos alambiques do Legislativo, não escrita, mas terrivelmente viva, ululante, brotada do âmago da realidade, uma lei que governa antes as mentalidades e os costumes, e pouco depois todas as relações entre os homens. É a lei da "jungle". Lei primária, bruta, simplista e feroz, lei anárquica por definição, à qual todos têm que se submeter, enquanto não se restringir o gargalo escancarado da liberalização indefinida.

Surge, então, a necessidade de uma lei "antijungle". Mas, aceita esta, a experiência prova que, em nossos dias, se cai de novo em uma espécie de ditadura, a seu modo também anarquizante. A ditadura do mais forte, segundo o estilo Velasco Alvarado. A ditadura, pois, técnica, burocrática, civil ou militar... pouco importa. A lei da força impõe então, em nome do princípio de autoridade, as mesmas reformas que o espírito de desordem e de revolta não conseguira impor.

* * *

Pensei nisto ao ler a notícia de que, após nove longos anos de tramitação, a Câmara dos Deputados aprovou, em apenas 3 minutos, pelo voto simbólico das lideranças, e com somente 34 deputados em plenário, o projeto do novo Código Civil (cfr. "Folha de S. Paulo", 10.5.84). Das 1.063 emendas, grande número nem sequer foi debatido. E lá se foi o futuro Código Civil, a singrar os mares mais tranqüilos do Senado. À espera, bem entendido, de outra aprovação-surpresa, rápida.

Uma reforma de Código Civil pode alterar a fundo a vida de incontáveis cidadãos. Pois tal Código dispõe mais ou menos sobre tudo quanto diz respeito à vida cotidiana dos indivíduos. Ele legisla sobre as pessoas, as coisas, as obrigações, as sucessões, e assim por diante.

Mas o povo, que não é alertado para isso, terá que absorver essa imensa mudança, sem ter participado dos debates em que ela se terá operado. Ele terá sido, no caso, o grande cego, pois a modicidade das notícias não lhes proporcionou ver para onde estava sendo levado. E quando abrir os olhos, ter-lhe-ão despido o velho e cômodo Código Bevilacqua, e ele passará a se sentir terrivelmente mal à vontade nessa camisa de força em que o vão meter, isto é, o novo Código.

E assim vai sendo manejada ditatorialmente, em um tema gravíssimo, a instituição legislativa, nessa abertura que deveria ser coisa tão outra.

É isto verdadeira abertura? Ou um passe de malabarismo para impor que o povo aceite o que quer uma minoria e, por cima de tudo, ainda conserve a cândida certeza de que é soberano?

E o bom povo ingênuo continua a repetir mecanicamente: liberdade! liberdade! liberdade!

Neste pântano de incongruências, a pergunta aflorará forçosamente aos lábios de todo homem sério: como sair-se dele?

De imediato, a situação exige que todos os homens com voz e vez no cenário nacional recebam o projeto de Código Civil. Que todos o leiam e iniciem entre si um imenso e público debate sobre cada um dos pontos a respeito dos quais as opiniões estão em desacordo. Que, muito mais do que por um jogo de futebol, entrem em efervescência de torcida a propósito desta modificação, sobre a qual as massas estão desinformadas. E que, em conseqüência, o conjunto da Nação possa decidir. É isto que exige a lógica da abertura.

Conferirá com isto a lógica muito mais confusa e alambicada de tantos políticos, eclesiásticos, homens de negócio, homens de sociedade? Temo que não. É que todas essas notabilidades, em consciente ou inadvertida colaboração, continuem a tudo fazer para se autodemolirem. Para o que será ótimo instrumento o novo Código.

A falta de espaço me impede de continuar. Aqui fico olhando para todos estes sintomas de autodemolição. Pretendo analisá-los em próximo artigo. E tomarei por instrumento de trabalho Engels, o sinistro amigo de Marx, e o cardeal Avelar Brandão, o farfalhante arcebispo-primaz de Salvador.

Os meus leitores, tão generosos em elogios, tão pacientes em ler-me, não perderão por esperar.


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