Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

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 "Folha de S. Paulo"

 

 

 

 

 28 de março de 1984 Bookmark and Share

Mais do que reis

Em minha longa vida pública nunca fui político. Não o fui sequer quando, nos já tão remotos idos de 1934, exerci o mandato de deputado constituinte por São Paulo, na "Chapa Única". Com efeito, nesta não representei qualquer partido político, mas a grande entidade extrapartidária que foi a Liga Eleitoral Católica. Durante todo o tempo que durou meu mandato, só tomei atitude pessoal – distinta da minha bancada – em função de problemas concernentes à defesa da Igreja e da civilização cristã. Terminado que foi esse mandato, as duas principais correntes políticas de São Paulo – o PRP e o Partido Constitucionalista – me convidaram, com gentil insistência, para integrar as respectivas chapas no pleito eleitoral seguinte, de 1935. Preferi lançar-me como candidato avulso nessa eleição, cujos resultados (diga-se de passagem) foram tão estrepitosamente contestados.

Lembro todos esses fatos para deixar claro até que longínquas raízes de meu passado remonta meu alheamento à política partidária. Alheamento este que só circunstâncias muito e muito especiais me levariam a superar.

Tal alheamento eu só o menciono, aliás, para acentuar o caráter estritamente apolítico e extrapartidário com que tenho tratado ultimamente e o faço mais uma vez hoje – o tema cada vez mais escaldante, das eleições diretas.

Importa ponderar aqui que esse alheamento não decorre de qualquer objeção de princípio contra a condição de político, ou à atividade partidária.

E entro no âmago do tema.

As eleições diretas têm como primeiro corolário, a meu ver, o voto facultativo. E, portanto, sem multa ou qualquer outra forma de coerção sobre o eleitor que, enfarado com todas as listas de candidatos, se recuse a votar. O outro corolário é a nulidade automática dos pleitos a que a maioria dos eleitores não concorra.

Não sou apologista do atual sistema representativo. Mas uma vez que ele aí está, convém que seja lógico consigo mesmo. Pois, por mais carente que seja um regime, sua intrínseca ilogicidade constitui de si uma agravante do que ele possa ter de mau, e um óbice ao que ele possa ter de bom.

Ora, para que o regime representativo seja autêntico, é preciso – o seu nome está a dizê-lo – que ele represente. Que represente o que? Obviamente o pensamento e a vontade dos eleitores. E, se a metade mais um destes se recusa a votar, o que significa isto senão que esses eleitores não sentem seu pensamento representado pelos candidatos, e por isso não os querem?

Em outros termos, um regime representativo que imponha o voto aos eleitores, mesmo quando estes não querem os candidatos apresentados, impõe-lhes que escolham entre candidatos aos quais são hostis, ou pelo menos totalmente alheios.

Como pretender então que tais candidatos representam esse eleitorado?

E que outro meio terão eleitores hostis ou inapetentes, para manifestar a sua recusa, senão a abstenção? Obrigá-los a que votem assim mesmo, não importa em proibir-lhes que exprimam sua rejeição? E se a lei eleitoral os proíbe de exprimir essa rejeição, em que sentido os representam os resultados do pleito?

Isto tudo posto, em sã lógica, o regime representativo só é autêntico quando não só o eleitor é livre de votar ou não; mas ainda quando, concomitantemente, é nula a eleição à qual não compareça mais de 50% do eleitorado.

Habituados que estamos aos grossos comparecimentos compulsórios de nossos pleitos, é normal que a muitos leitores se afigure inteiramente fantasiosa a hipótese de que a maioria do eleitorado não compareça a eles. Porém, a experiência de diversos países prova que a hipótese nada tem de extraordinário. Assim, na vizinha Colômbia se realizaram, no último dia 11 de março, eleições para as Câmaras Legislativas estaduais e municipais. E a elas só compareceu 28,6% do eleitorado (cfr. "El Tiempo" de Bogotá, 13.3.84). Os eleitos por essa magra minoria representam a maioria? Não vejo como sustentá-lo.

Na Idade Média e no "Ancien Régime", que os farfalhantes propugnadores do moderno sistema representativo tanto caluniam como eras de tirania, de despotismo etc., etc., ao povo nunca foi recusado o direito de manifestar seu desagrado em relação aos reis. Embora essa manifestação não fosse permitida sob a forma de vaias ou apupos desrespeitosos à majestade real, era permitido ao povo (e como proibi-lo?) não aplaudir o rei, quando se apresentava em público. De onde o aforisma célebre: "O silêncio dos povos é a lição dos reis".

Em outros termos, o descontente tinha sempre a liberdade de ficar em casa, quando o rei ia ser homenageado pelo povo. Ou de calar-se durante a homenagem.

Os propugnadores do voto obrigatório querem cercar os candidatos a deputado e senador das modernas democracias com privilégios que nem aos antigos reis cabiam. Quando esses candidatos apresentam seus nomes ao eleitor, este não tem o direito, nem de ficar em casa, nem de se calar. Cumpre votar em algum deles, e em ninguém mais. É isto representatividade? – Mais uma vez pergunto...

Poderia alguém objetar que essa recusa de optar, o eleitor poderia exercê-la, ainda quando obrigado a comparecer às urnas, se depositasse, no segredo indevassável da cabine eleitoral, um voto em branco.

Em tese, sim.... no mundo da lua. Pois, já que o eleitor tomou o trabalho de ir à sua seção eleitoral, se lhe afigura como lógico que ele tire dessa amolação pelos menos algum proveito. E tal proveito consistirá normalmente, para ele, em votar na cédula partidária que lhe parece menos má. O voto em branco se caracteriza aí com um não sei que de platônico, de gélido e inumano. É o que o torna raro.

Só o que garante ao eleitor a expressividade de seu descontentamento é a convicção de que, abstendo-se de votar, ele dá um voto a favor da nulidade do pleito. O que convida os partidos a elaborarem novas chapas mais a gosto do público.