Plinio Corrêa de Oliveira
Artigos na "Folha de S. Paulo"
|
|
12 de agosto de 1982 Função social, porrete e faca À primeira vista, nada de mais simples, nem de mais claro: se A é proprietário de bens que lhe sobram, e B está em risco de vida por que lhe falta uma parcela desses bens e, ademais, B não tem com o que pagar A, estabelece-se entre A e B uma situação conflitual. Pois o direito à vida de B entra em choque com o direito de propriedade de A. Qual dos direitos deve prevalecer? Evidentemente o de B, pois o direito que um homem tem à sua vida é preeminente em relação ao direito que outro tem à sua propriedade. Esta solução tão simples, que se prende à função social da propriedade, constituía matéria para investigações – obras-primas de subtileza e sensatez – dos moralistas católicos antigos. Assim, debatiam eles se a obrigação de A assistir a B pertencia aos deveres de caridade ou aos de justiça. Neste último caso, em que gênero de justiça se encaixavam: comutativa ou distributiva. E sendo na distributiva, caso o beneficiário adquirisse posteriormente haveres que lhe sobrassem, se era obrigado a reembolsar o benfeitor. Em qualquer eventualidade, ficaria B devendo gratidão a A, isto é, afeto, respeito, ajuda quando ocorresse o caso? E assim outras questões, algumas das quais nada simples, todas muito importantes não só para a boa formação moral do católico mas também para o adequado relacionamento entre os homens. Exemplifico. Se alguém não tem como pagar moradia, e outrem tem casas de sobra, o segundo deve franquear gratuitamente alguma habitação ao necessitado; ou se alguém não tem onde plantar, e outrem tem terras de sobra, este último deve facilitar as terras necessárias ao primeiro. "Franquear", "facilitar"? O que querem dizer exatamente esses vocábulos? Emprestar gratuitamente enquanto dure o tempo de carência? Ou dar? Opino que, sempre quando a situação de B possa ser remediada com um simples empréstimo, exigir a doação constitui autêntico abuso. Um pouco como se, precisando de pão um indigente, o padeiro lhe tivesse que dar a padaria, e não apenas o pão. Opino ainda que, podendo o indigente que consiga abastança reembolsar quem lhe cedeu o uso gratuito, ou a propriedade de algum bem, deve fazê-lo. E que, em qualquer caso, o beneficiário fica vinculado ao benfeitor pelos laços do respeito e da gratidão. Deve-lhe homenagem e assistência. * * * Bem entendido, assim não pensa a "esquerda católica". O carente deve ver em todo abastado um ladrão, o qual está indebitamente de posse de algo daquilo a que o carente tem direito estrito. Pelo que, ao carente toca o direito de avançar pura e simplesmente – de porrete ou faca na mão, se for preciso – contra o abastado, e arrancar-lhe o necessário. Quem julga da quantidade e da qualidade desse necessário? É o carente. Tanto mais que ao lado dele está o berreiro demagógico da imprensa esquerdista e, muito frequentemente, o apoio ainda mais demagógico do bispo local. Berreiro e apoio sem os quais o carente jamais ousaria empunhar a faca, ou o porrete... Do papel da caridade cristã para resolver pacificamente situações dessa natureza, a "esquerda católica" nada diz. Ou quase nada. Da justiça comutativa, pela qual alguém deve pagar o que comprou, ou fornecer o que vendeu, e da distinção entre esta justiça e a distributiva, idem. Dos deveres de gratidão, de homenagem e de assistência do beneficiário, menos ainda. Ela pretende fulminar todas essas nobres obrigações com uma só injúria: "cheiram à Idade Média". E, munida de uma noção assim empobrecida do que seja a justiça social, a "esquerda católica" investe contra toda a ordem sócio-econômica vigente. Com gáudio, é bem claro, do PC, do PC do B, e de todo gênero de socialistas, utopistas ou terroristas. O mais curioso é que, assim procedendo, a "esquerda católica" não hesita em afirmar que tenta introduzir entre os homens a plena vigência dos princípios de igualdade e fraternidade, os quais, se olhados de certo ângulo, perdem o espírito subversivo que lhes deu a Revolução Francesa. Ora, é precisamente o contrário que se dá. Com sua justiça social falha de matizes, descabelada e agressiva, a "esquerda católica" não faz senão introduzir a escravidão entre os homens. Vamos aos fatos. Até aqui se considerou como atributo essencial do homem livre a escolha da profissão. E do lugar, bem como das condições em que essa profissão se haja de exercer. Consideremos, entretanto, uma região sertaneja para onde tenham afluído muitos desbravadores. Ali faltam médicos. E de vez em quando alguém morre à míngua de tratamento. Ou ali faltam casas razoáveis, pois não há engenheiros nem mestres-de-obra. Ou, enfim, ali pululam os crimes, porque faltam advogados que promovam a defesa dos direitos genuínos. Nas regiões vizinhas, pelo contrário, há fartura de médicos, advogados e engenheiros. Em consequência, dá-se um choque entre o direito à vida, à moradia condigna e à segurança pessoal do sertanejo, de um lado, e de outro lado o direito dos médicos, advogados e engenheiros de exercerem sua profissão onde entendam. Repete-se a situação conflitual entre A e B descrita no começo deste artigo. Ora, não é só ao direito de propriedade que toca uma função social, mas a todo direito humano. Logo, a raciocinar simplística e demagogicamente sobre o assunto, caberia aos sertanejos exigir que os ditos facultativos se transladassem para o seu sertão. O que daria forçosamente no direito, para o Poder público, de requisitar os facultativos que entendesse, e mandá-los – pobres mujiques intelectuais – para onde fossem designados. Mas, bem analisadas as coisas, não seria difícil descobrir cem outras situações análogas: dentistas, donos de aparelhos de radiografia, de laboratórios de análise, de hospitais, de empresas de recreação (não é também esta indispensável à vida humana?), professores, etc. Tudo isto podia ser agarrado com pinça nas partes "privilegiadas" das grandes cidades, para ser redistribuído pelos bairros, ou pinçado indistintamente nestas últimas, para ser atirado por esses sertões imensos do Brasil, ao encalço dos desbravadores, onde quer que esses se atirassem à busca de riquezas.... para si mesmos. Mais ainda. Se o afluxo de candidatos a certa profissão indispensável baixasse no País, o Estado teria o direito de promover nas escolas secundárias os inquéritos adequados para discernir as pobres crianças que tivessem jeito para elas, e obrigá-las a seguir essa profissão, até contra o gosto delas e dos pais: função social. * * * A função social, assim simplística e demagogicamente entendida, promete liberdade e igualdade. E cria uma nova classe de mujiques, de escravos no estilo da Rússia comunista. "Função social, função social, de quantas injustiças e até de quantos crimes vai sendo ameaçado, em teu nome, todo o Brasil" - tenho vontade de exclamar, quando penso em tudo isto! |