Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

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23 de fevereiro de 1982

Mitterrand na América Latina

Notícia de um jornal recifense ("Diário de Pernambuco", 21-1-82) leva-me a interromper a matéria na qual deveria continuar hoje, conforme o prometido em meu artigo "Autogestão e catapora", de 30 de janeiro p.p.

O estudo da atual política exterior da França faz ressaltar expressivos contornos da política externa do Brasil

De que modo?

Para responder vamos diretamente à notícia do Diário de Pernambuco.

O perfil que o Sr. Jacques Huntzinger, secretário do PS francês para as relações internacionais, traça de Mitterrand é o de um homem de Estado "apostólico", como o foi nos Estados Unidos o ex-presidente Carter (que tantíssimos brasileiros, e entre eles eu, nos regozijamos em ver afastado da Casa Branca). O chefe de Estado francês quer não só "aumentar sua presença econômica e comercial na América Latina", o que é normal, mas também desenvolver "uma diplomacia atenta aos direitos humanos". O que significa um empenho em acompanhar, com olhos de juiz, a política interna de nossos países, a ver se é respeitado aqui aquele amálgama de verdades e de "non senses", de abstrações vazias e de erros, que o Partido Socialista francês dogmatiza serem os "direitos humanos". Ou seja, os critérios supremos pelos quais, depois das vitórias eleitorais social-comunistas na França, devem afinar as leis e os governos de todas as nações latino-americanas, são os que figuram nas cartilhas do PSF, e dirigem a mente do presidente Mitterrand. Se o Brasil se deixar arrastar por essa via, não vejo que continue intacto "o sol da liberdade", o qual, segundo descreve o Hino Nacional, "brilhou no céu da Pátria neste instante", isto é, no instante em que D. Pedro I lançou o brado da Independência.

Não é preciso ser muito malicioso para vislumbrar que o "apostólico" Mitterrand deseja "aumentar sua presença econômica e comercial" entre nós, precisamente para ajudar a conquista da utópica liderança filosófico-política que para si pleiteia.

Alguém poderia dizer que tudo isto não tem para nós especial alcance, pois concerne na prática tão-só às interferências de Mitterrand nas pequenas repúblicas da América Central.

Segundo a mesma notícia, a ação de Mitterrand visa desenvolver uma "política mais ativa em matéria de direitos humanos, em particular na Argentina e no Chile". Logo os dois grandes países sul-americanos. O Brasil indiscutivelmente outro grande país do continente, que vá pondo as barbas de molho...

Isto está longe de ser pouco. Mas principalmente está longe de ser tudo. Mitterrand quer participar pura e simplesmente de nossas lutas internas. O Sr. Huntzinger explicitou que a tal "presença" francesa deve exercer-se notadamente "em alguns terrenos de luta que parecem conduzir certas sociedades latino-americanas para horizontes diferentes dos propostos pelos Estados Unidos". Ou seja, bem sabemos quais são aqui as correntes ideológicas que procuram mobilizar, exacerbar e levar à aventura famílias de almas brasileiras habitadas por ressentimentos – alguns destes clamorosamente justos – contra os Estados Unidos. Tornar-se "presente" no Brasil, para a coligação social-comunista que governa a França, significa promover a agitação cultural. Ou até, talvez, mandar técnicos de conscientização, de fermentação de massas, e de tensão social.

A que conduz o pleiteado esfriamento com os Estados Unidos? Ele tende a privar-nos de um parceiro poderoso, rico, e movido por impulsos alternativos de egoísmo e de compreensão fraterna. A ficarmos privados desse parceiro, onde encontraríamos outro? Dada a estatura do Brasil atual, não nos bastariam a França, a Grã-Bretanha ou a Alemanha Ocidental. Porém, na estrada onde subitamente notaríamos que a solidão nos cercou, uma grande mão se nos estende largamente aberta. É a mão... a pata de urso... da Rússia soviética.

De onde vem a esta o ouro que gasta a rodo no mundo todo? Só do trabalho dos mujiques, executado em regime de senzala? Hipótese ridícula, pois esse trabalho não dá para manter a própria Rússia. Esse ouro lhe vem, isto sim, das nações capitalistas, nas quais rodas de altos burgueses "sapos" conspiram e cooperam com altos eclesiásticos de esquerda para manter, tão longamente quanto possível, o orçamento soviético.

É o poder do mau capitalismo. Desse mesmo mau capitalismo que os burgueses "sapos" e os eclesiásticos de esquerda vituperam como se consistisse só nele o capitalismo inteiro.

Enfim, tudo isto nos leva longe. Voltemos à América Latina, mais precisamente ao Brasil.

Passo a reportar-me agora, não só às declarações do secretário Huntzinger, mas a tudo quanto, relativamente à política exterior, se infere do Programa Socialista francês, e a outros documentos que tive a ocasião de citar largamente, há pouco, em trabalho publicado nos principais jornais do Ocidente ("Folha de S. Paulo", 8.1.82). A coligação social-comunista que governa a França visa aglutinar em torno desse país todo o Terceiro-Mundo, em uma frente internacional que se situaria idealmente entre as duas superpotências, norte-americana e russa.

Essa frente, de países fornecedores de matéria-prima, não teria apenas um interesse econômico comum, mas também uma ideologia comum.

Por sua vez, essa ideologia estaria a meio caminho entre a do capitalismo e a do comunismo. Seria a ideologia socialista autogestionária.

Esse terceiro bloco – esse Terceiro Mundo – a si mesmo se definiria, não como adversário dos dois outros, mas como o traço de união entre um e outro. O ponto de convergência para o qual deveriam confluir o bloco capitalista e o bloco comunista, a fim de evitar a 3ª guerra mundial.

É possível que tudo isso seduza os amadores de política-fiction e de utopias. Na realidade, a autogestão não é senão a meta última do comunismo. Pondo todo o mundo em autogestão, este último a si próprio se superaria. E a propriedade individual cairia por terra.

Estão os brasileiros, os latino-americanos, suficientemente conscientes de que é a isto que os convida o presidente Mitterrand? Estou certo de que nosso País de nenhum modo quer caminhar para lá. E me pergunto, não sem perplexidades, qual é, à vista disso, o rumo do nosso Itamarati.


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