Conheço o caso de um antigo fazendeiro paulista, senhor de vastos
cafezais e de uma espaçosa mansão: quadrilátero com dois andares, porta
ao centro e janelas de guilhotina iguais ao longo de toda a fachada.
Ornamento externo nenhum. O fazendeiro, segundo o estilo tradicional,
era também advogado e político.
Família unida, títulos de propriedade seguros, terra roxa, casa
firme, colonos submissos, vizinhos pacíficos, nada faltava ao sossego
daquele laborioso fazendeiro. Mas um adversário inopinado lhe atacou, no
cerne, o feudo tão sólido. No cerne, digo, pois irrompeu inopinadamente
dentro da própria casa. E – mais surpreendente ainda – esse adversário
vinha de baixo para cima. Um só adversário? Mais exatamente milhares.
Talvez milhões. Pequenos, conquistando terreno aos milímetros, no
silêncio, despercebidos, dominaram o subsolo, enquanto em cima, na casa,
o fazendeiro e sua família trabalhavam, comiam, bebiam, dormiam e se
divertiam. Um belo dia, uns poucos irromperam na copa. O fazendeiro os
matou e ordenou uma investigação. E percebeu que já eram numerosos a
ponto de ser inútil qualquer resistência. As saúvas – pois eram elas –
haviam construído por todo o subsolo um labirinto tão vasto que inútil
seria destruí-lo. Para resumir a história, o fazendeiro mudou-se, a casa
ficou abandonada, o cafezal começou a ser invadido. Esse fazendeiro, que
julgava nada ter a temer de qualquer potentado, foi arruinado por essas
miríades de adversários pequenos, escuros e silenciosos.

Lembrei-me disto quando comecei a escrever o presente artigo. Pois o
tema sobre o qual queria escrever era o triunfo dos homúnculos na
sociedade moderna.
Por
homúnculos entendo aqui os homens de espírito pequeno, que cabem, cada
qual por inteiro, em um dos mil alvéolos da vida cotidiana. Os que
querem uma vida feita pela banalidade de cada dia. Para os quais ontem
foi incolor, inodoro e insípido, como hoje e como amanhã. O oxigênio que
respiram é a banalidade. E o prazer das coisas está essencialmente na
repetição.
Para
homúnculos assim, incômodo é tudo quanto é grande, venerável pela
antiguidade ou magnífico pelo futuro que abre; tudo, enfim, que sai das
dimensões cotidianas: holocausto, valentia, genialidade, delicadeza "exquise"
[requintada, n.d.c.], infortúnios trágicos, e tantas outras coisas.
É preciso
acabar com tudo isto, com todos os que são assim, ou que algo disso
refletem em seu espírito, em suas maneiras, sua linguagem, seu modo de
ser ou sua conduta.
As
incontáveis mudanças ocorridas em nosso século, em quase todos os
domínios da vida, constituem vitórias dos homúnculos, pois elas sempre
diminuem algo ou alguém. A sociedade humana se vai afeiçoando cada vez
mais ao gosto das almas-saúva. O que tem como conseqüência que as almas
grandes se sentem, neste mundo minado em torno delas, como meu
fazendeiro. Quem hoje aspira a qualquer forma de grandeza, máxime a da
virtude, ou se disfarça, ou sobre ele se precipitam imediatamente as
saúvas saídas dos vastos e obscuros porões da mediocridade. E o expulsam
para as regiões da incompreensão, da indiferença e do isolamento, nas
quais a mediocridade reduz a viver quantos não cabem nos padrões dela.
*
* *
Vejo
neste gigantesco fenômeno sócio-patológico, nessa insurreição universal
dos homúnculos contra os que os sobrepujam, uma das causas do entreguismo do Ocidente. O homúnculo,
o homem-saúva, detesta a luta mais
do que tudo. Esta acarreta grandes esforços, só entusiasma as grandes
almas, ocasiona a fulguração de grandes infortúnios. O homem-saúva luta,
por isto, contra todas as formas de luta. Singular batalha, que ele
trava cedendo, fugindo (para baixo, bem entendido), capitulando:
deixando-se esmagar até, se não houver outra solução.
A
esta família de almas pertencem os incondicionais do ecumenismo. Temendo
o aceso das disputas entre as religiões, o homem-saúva quer fundir
todas numa só pan-religião, aliás mais ou menos atéia. Para o
homem-saúva, todas as crenças e todas as descrenças devem confundir-se
no mesmo ralo do ecumenismo.
Pela
mesma razão, o homem-saúva está pronto a dar de barato sua pátria, como
faz com suas crenças. O inimigo, ele prefere não o ver. Se é obrigado a
vê-lo, imagina-o em vias de conversão: desestalinizado, de face humana,
transformado em pacato (e ambíguo...) socialismo. Se o inimigo penetra
nos setores políticos do país, ele lhe sorri, e o rotula de "pra-frente"
e "no vento". Se se infiltra nos meios católicos, qualifica-o
analogamente de "progressista". Quando o inimigo cresce tanto que se
torna ameaçador, o homem-saúva proclama irreversível o perigo, e tenta,
como meio-termo, uma estratégia de "convergência", inspirada no lema
“vão-se os anéis e fiquem os dedos”. E, por fim, se o inimigo, depois de
tomados os anéis, exige os dedos, o homem-saúva sussurra: "vão-se os
dedos e fique a vida".
*
* *
Mas,
todas essas concessões, o homem-saúva só as faz à esquerda. Toda a sua
ação silenciosa e inexorável, de infiltração, de corrosão, de erosão,
ele a faz na direita e no centro, onde costuma instalar-se. E, então não
cede, não foge, não converge, ele mina.
Por
quê? Detestando tudo quanto é elevado, nobre e harmoniosamente desigual,
para o homem-saúva, quanto mais igualdade melhor. E para uma igualdade
totalmente rasa, totalmente plana, para lá vão seus anelos pacifistas.
Rumo ao
comunismo, ou ao anarquismo.
Vivemos numa época de revolução. É banal dizer-se. Sim. Da revolução dos
homens-saúva, contra tudo quanto tenha qualquer grandeza...
