Plinio Corrêa de Oliveira
Artigos na "Folha de S. Paulo"
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Quadros vivos. Estampidos Chegado há pouco de Paris, um amigo contou-me ter assistido a uma representação teatral "sui generis". Servia de enredo, não uma ficção literária, mas uma fase da História da França. Com trajes da época e em conformidade com as fontes mais exatas, reproduziam-se no palco cenas da "débâcle" frenética, suja e sangrenta do Terror. Sempre que a ação cênica apresentava algum episódio relevante por sua importância histórica, ou por sua dramaticidade lancinante, em certo transe os atores se detinham "faisant tableau". Mais precisamente fazendo quadro vivo. Tal recurso corresponde ao operar de espírito de todo espectador lúcido. Este não é devorado pela pressa de "chegar logo ao fim", mas sabe colher, ao longo do enredo, cada pérola, cada flor, cada jato de luz, ou cada jorro de trevas. "Colher" é fixar a atenção, deter-se, analisar e – suprema delícia – concluir. Assim, uma representação histórica que se detenha de quando em quando, à maneira de quadro vivo, me parece penetrantemente psicológica. Quer esteja de acordo comigo, quer em desacordo - ou, talvez, nesse misto característico de acordo e de desacordo que é o lodaçal salobro da insegurança moderna – o leitor me perguntará o que tem de ver isto com meu tema de hoje. Explico-me. Há poucos, há pouquíssimos dias atrás, os acontecimentos mundiais se desenrolavam nesse misto de dormideira, de gemidos, risos e uivos tão típico do caos hodierno. A Espanha, por exemplo, estava dilacerada entre divorcistas e antidivorcistas. O Ministério caíra. Um golpe de Estado ultracolorido abalara o país. Cone emergente de um grande "iceberg" de inconformidade? Ou obra conjunta de um Dom Quixote em Madri, e de um Sancho Pança em Valência? Não se sabe. O golpe foi sustado. Da polêmica sobre o divórcio não se ouviu mais falar. Da política, também não. Na imaginação popular, também só ficaram – paradas – as cenas do herói ou do Quixote irrompendo nas Cortes para levar presos os membros do governo, ou então entregando-se dramaticamente à polícia. A propósito da Polônia, o mesmo. Ontem ainda, João Paulo II acolhia na sala do Consistório o líder sindical Walesa, e lhe conferia, do modo mais solene e impressionante, um verdadeiro generalato para a direção da opinião católica em seu país. Dir-se-ia que um grande plano estava esboçado, e um acontecimento – ou melhor, uma sucessão de acontecimentos – iria irromper. Walesa volta a Varsóvia, e tudo continua como antes. Ou seja, entre o governo de um lado, e do outro lado o "front" formado pelo cardeal Wyszynski e por Walesa, continuam as mesmas tensões e os mesmos entrechoques vistosos, ocasionados por assuntos de segundo plano. Como de estilo, logo depois do choque, suspense; parece que vai acontecer o pior. Mas eis que surge uma fórmula inesperada, a qual conduz ambas as partes a um diálogo. E este, por sua vez, leva ao "mezzo termine" final. Distensão. Alívio geral. Elogios à prudência do governo, à firmeza ágil de Walesa, e ao já mil vezes celebrado tacto do cardeal Wyszynski. Daí a alguns dias, e a propósito de outro assunto do mesmo quilate, o mesmo processo recomeça. De novo na Polônia, só um pormenor. Segundo o jornal "Zoinierz Wolnosci", do Exército polonês, há sacerdotes católicos que afirmam haver nesse jogo uma traição do cardeal Wyszynski, acumpliciado com os comunistas (cfr. "O Globo", 4-3-81). Invencionice? Do jornal comunista? Dos aludidos padres? O público, exausto, já não acompanha muito os fatos. Fica-lhe apenas na memória, como quadro vivo, a sala do Consistório, suntuosa e sacral, e nela as figuras de João Paulo II traçando diretrizes, e Walesa fazendo protestos de obediência, diante de um público restrito e das objetivas das TVs. Um fato mais recente. Kremlin: reúne-se novo congresso mundial dos PCs. Porta-voz do mais numeroso PC do Ocidente, Giancarlo Pajetta, secretário-geral do Partido Comunista Italiano (de tendência marcadamente eurocomunista) tem seu discurso feito para ser lido em uma das reuniões oficiais. A peça contém ataques à política russa frente ao Afeganistão e à crise europeia, e reivindica autonomia para os PCs não russos. A censura considera "heterodoxa" a arenga de Pajetta, e o proíbe de a ler perante o congresso. Como ficha de consolação, dá-se-lhe o ensejo de falar em uma reunião sindical. Com quantas pessoas presentes? Destas, quantas pertenceriam à polícia KGB? O noticiário telegráfico não o diz. Na memória do público fica apenas, parado como num quadro vivo, um agente soviético, de feições e formas dinossáuricas, restituindo a Pajetta o discurso e gritando-lhe, ao mesmo tempo, "nyet". Intimidado, de cabeça baixa e braço curto, Pajetta recebe o discurso. Com muito menos destaque, e muito menos notada pelos leitores, os noticiários divulgaram outra informação. A propaganda vermelha faz o possível para divulgar o episódio Pajetta, na esperança de que muitos eleitores, persuadidos assim da incompatibilidade entre o Kremlin e o eurocomunismo, se deixassem atrair para o PCI. O incidente de Moscou não foi senão um "show", como que um "quadro vivo" para fins eleitorais italianos? Parece. Abstenho-me de comentar os suspenses ou "quadros vivos" do cenário brasileiro: as adormecidas agitações operárias do ABC e de alhures; as Comunidades Eclesiais de Base até há pouco mais agressivas; a CNBB, a qual passou todo o ano de 80 alvoroçando o País com sua reforma agrária e suas ameaças de reforma urbana, e que o documento Itaici-1981 parece comentar com voz de sono a realidade nacional. Tanta coisa parece mais ou menos estagnada. Apenas, aqui e acolá, fogachos enigmáticos. No Ceará, onde sempre houve, em tempo de seca, tristes e simpáticas populações de flagelados, alguns magotes começaram a fazer, agora, mini-revoluções sociais. Por que a novidade? Presença de agitadores profissionais? Parece que a efervescência já respinga na Bahia, no Piauí, na Paraíba e alhures, tendendo a formar quadros vivos. Quando este artigo sair, terão começado, pelo mundo afora, ainda outros quadros vivos? Ter-se-ão movido alguns dos que existem? Por vezes resulta da imobilidade, não o movimento comum, mas o estampido... |