Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

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 "Folha de S. Paulo"

 

 

 

 

  Bookmark and Share 27 de janeiro de 1981

Águias e besouro

Pode ser difícil para um homem – ou melhor, para um grupo de homens – desviar um curso de água. Ser-lhe-ia mais difícil ainda desviar de seu leito o Amazonas. "Difícil, não: impossível!" – objetará alguém. – Impossível? Em termos. A própria impossibilidade tem matizes, pois teoricamente é condicionada pelo número de homens, pela qualidade e pela quantidade dos instrumentos, pelo tempo disponível etc. Impossível no sentido mais forte do adjetivo, seria verter num dedal o conteúdo de um copo d’água. Digo-o para evidenciar que, por vezes, certas pequenas operações estão mais fora do alcance do homem do que outras entretanto gigantescas. Assim, fazer caber em um artigo de jornal matéria de si muito ampla pode ser mais difícil do que redigir dez longos artigos.

Assim, condensar em dois artigos certos aspectos da publicidade feita em torno da visita de Lech Walesa a João Paulo II dá-me a impressão de ser quase tão impraticável quanto verter a água de um copo em um dedal. Contudo, começo por descrever o complicado fundo de quadro do assunto.

Não há quem ignore estar o povo polonês trabalhado por crescente descontentamento com o regime comunista vigente em seu país. O que pode levar à derrocada do regime. Segundo a versão tida por indiscutível (quanto a mim, acho-a de todo em todo improvável), a Rússia ocuparia então a Polônia. E sujeitá-la-ia a uma carga ainda mais igualitária e policialesca. Tragédia para a Polônia e também tragédia para o mundo. Pois, sempre segundo a saga corrente, o Kremlin conservaria nas garras a Polônia, ainda que tivesse de enfrentar o perigo de uma ação norte-americana libertadora, ou seja, de uma guerra mundial, eventualmente atômica. Logo a Rússia, pondero eu; ela que se manifesta incapaz de deglutir o Afeganistão pequeno como um besouro, teria a pretensão de dominar a nobre águia branca da Polônia, e de enfrentar depois o perigo de uma luta com a superpotente águia norte-americana!

Vistas as coisas a partir da saga, compreende-se que Walesa tome dimensões de figura mundial. Se o movimento que ele lidera derrubar o governo de Varsóvia, teremos a catástrofe. Se não o derrubar, teremos a paz. Para a Polônia, o ideal seria, assim, que Walesa alcançasse êxito tão grande quanto o consentissem os russos. Nem uma linha além disto, pois do contrário poderá vir a hecatombe. Obter esse êxito, e graduá-lo com tanta precisão. Eis o que numerosos – e muito ilustres – poloneses dele esperam. E não só poloneses, como pacifistas extremados do mundo inteiro. Se bem que, entre os próprios poloneses, também haja uma corrente de peso, a qual deseja derrubar o governo de Varsóvia, certa de que nada sucederá.

Face a tal quadro, quais as metas imediatas e mediatas do Vaticano? As primeiras estão claramente enunciadas no discurso de João Paulo II. Consistem em que Walesa opere exatamente a graduação necessária para ganhar algum tanto de terreno – algum tantinho – sem provocar a guerra. Para o que, João Paulo II deu a Walesa a acolhida "hors série" (fora de série, excepcional, n.d.c.) que se viu.

Contudo, não me parece verossímil que o Vaticano, tão lúcido em sua diplomacia bimilenar, se deixe impressionar pela carantonha com que os homens do Kremlin fitam o Ocidente, e se esqueça de que os homens da carantonha, terríveis quando vistos deste lado do mundo, estão sendo espancados no Oriente pelo anão afegão. Por que então temer a carantonha?

Mistérios do mundo detrás da cortina de ferro. Mistérios do mundo eslavo. Mistérios do jogo comunista internacional. Mistérios do século 20. Um dia se verá claro em tudo isso. Não é minha intenção dissertar sobre tão vasto tema. Não tentarei verter no dedal o oceano.

Mas creio dar uma contribuição sugestiva para a elucidação do assunto, pondo em evidência que jornais romanos de centro, de centro-esquerda e de esquerda – e em medida nada pequena também jornais paulistanos – deram à acolhida proporcionada por João Paulo II a Walesa uma publicidade acentuadamente maior do que lhe concedeu o cotidiano oficioso da Santa Sé, "L’Osservatore Romano".

Neste fato, o que há para discernir e "subdiscernir"?

Walesa não é senão um particular. O líder de uma corrente operária. E líder a tal ponto controvertido que, segundo tem afirmado mais de um analista internacional, João Paulo II lhe dispensou tão ressonante acolhida precisamente para lhe conferir o "quantum" de prestígio que lhe falta para o seu difícil trabalho de regulagem.

Ora, neste rumo, o Vaticano teve o concurso decidido das três maiores organizações sindicais da Itália. Cito-as na ordem de sua importância numérica: CGIL comunista, CISL católica e UIL socialista.

Essas organizações facilitaram o ensejo da visita de Walesa (eu ia escrevendo Lula, mas corrigi a tempo), convidando-o para conferências em Roma, recebendo-o no aeroporto de Fiumicino com discurseira e copiosa claque, e proporcionando-lhe contatos com bem fornidos auditórios operários.

A visita a Roma, assim desencadeada, tornaria natural um pedido de audiência de Walesa (que viajava à maneira de celebridade, com familiares e séquito numeroso) ao Sumo Pontífice. Bem entendido, o fruto essencial da viagem, ou seja, a suplementação de prestígio, adviria a Walesa incomparavelmente mais do Vaticano do que dos sindicatos italianos. Este o fundo de quadro. Veremos, no próximo artigo, que João Paulo II concedeu essa suplementação com liberalidade principesca.

Por hoje faço notar que ao mero particular que é Walesa, aguardava em Fiumicino, com o trio sindical, o próprio Mons. Achille Silvestrini, secretário do Conselho para Assuntos Públicos da Santa Sé.

Pequeno mistério no meio de outros tão maiores: menciono Mons. Silvestrini porque o designa taxativamente "L’Osservatore Romano" do dia 14 de janeiro corrente, se bem que as agências noticiosas tenham afirmado estar presente não ele, mas Mons. Coppa, da Secretaria de Estado. Por que e para que esse lapso? Ignoro-o. Matiz dentro dos matizes. Mistério menor em meio a mistérios maiores.


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