Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

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 "Folha de S. Paulo"

 

 

 

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8 de maio de 1980

PDQNCP

Segundo muitos, a presente "abertura" é uma operação que se reduz a seu sentido material. Isto é, ao ato de abrir as portas das prisões aos presos políticos, as fronteiras do País aos exilados. E eis tudo. Postos todos estes em livre circulação, e ademais mimados e aplaudidos pelos meios de comunicação social, a abertura está completa.

Segundo esta concepção rudimentar, a "abertura" não constitui um benefício para o País, mas tão-só para os que, em determinado momento, atentaram contra este – ou, pelo menos, procederam de maneira que se fizessem suspeitar por tal.

Alguém com vistas menos acanhadas pode objetar, com razão, que os promotores da "abertura" visaram muito mais do que isso. Encarada a democracia como a participação de todo o povo no governo do País, a integral reimplantação dela importa, para cada cidadão, na efetiva abertura da parcela de poder decisório que os princípios democráticos lhe atribuem. Democratizar é abrir.

Corolário disto é que cada cidadão tenha o direito de dizer, de escrever e de fazer o que bem entenda, ressalvadas apenas duas barreiras. Uma é a lei, onipresente, bisbilhoteira e dura. A outra são os bons costumes: barreira mole e em franco estado de ruína. Com efeito, nada é mais precário, nada hoje se vai deteriorando tão depressa como os bons costumes.

Não analiso aqui se, e em que medida, tal "abertura" é um bem. O problema é totalmente extemporâneo.

Pergunto-me, isto sim, se – ainda dentro desta conceituação mais larga – a "abertura" cabe inteira. De momento, finco só a interrogação em um aspecto absolutamente fundamental do problema.

Por mais que se celebre a liberdade de dizer e de fazer, forçoso é reconhecer que ela tem como pressuposto outra liberdade: a de pensar. Se não sou livre de pensar à minha guisa, não posso ser livre de dizer ou de fazer algo de meu. No total, estarei dizendo e fazendo – ou omitindo-me de dizer e de fazer – o que outros querem. A primeira das liberdades está, para cada homem, dentro das paredes (de certa maneira augustas como as de um santuário) de sua caixa craniana. Pergunto então se a "abertura" não comporta também a inteira libertação da mente de cada qual, dos obstáculos ou das ingerências que a coarctam.

Mas como pode alguém intervir no domínio indevassável do próprio ego de outrem? Essa pergunta é arcaica. Nesta época de guerra psicológica, das prestidigitações e dos truques publicitários, das ingerências parapsicológicas etc., afirmam muitos que na mente de uma pessoa é tão fácil agir quanto em um cofre. Basta conhecer-lhe o segredo e abrir a porta.

Ora, parece-me que, até o momento, a "abertura" brasileira tem negligenciado este aspecto e, portanto, seu próprio pressuposto.

Essas reflexões me ocorreram a propósito da viagem para a qual o governo de Moscou está a convidar o presidente Figueiredo. Fazendo uso da "abertura", declaro que essa perspectiva não poderia me desagradar mais. Posto que nosso governo toma a sério os princípios em que se baseia a civilização cristã, a coerência impede que seu Chefe vá visitar um país cujo regime político e sócio-econômico está modelado segundo cânones diametralmente opostos. Tal visita eqüivale, pelo menos, a uma afirmação de displicência face à transgressão escandalosa e sistemática, que nesse país se opera, de todos os preceitos do Decálogo, nos quais se fundam os direitos das pessoas, das famílias e dos povos.

Admitida esta tese, é cabível a hipótese de que razões políticas ou econômicas gravíssimas, diretamente relacionadas com a "salus publica" brasileira, exijam essa visita. Será isto verdade? Ponho-me a refletir. E concluo que nada posso concluir. Pura e simplesmente porque me faltam dados. Por exemplo, em matéria econômica, preciso saber se a Rússia paga efetivamente o que nos compra. Como ela costuma blefar nesta matéria, quero dados, quero estatísticas, quero documentos.

Onde estão eles? Simplesmente não existem.

Outra matéria sobre a qual igualmente não consigo pensar nem concluir: à vista de toda a agitação promovida em São Paulo pelo clero de esquerda, pergunto-me se, para além dos problemas salariais, não há outros cuja reta solução aliviaria os efeitos da inflação, arejaria a economia e as finanças nacionais, e tiraria às comunidades eclesiais de base algumas razões e cem pretextos para a sua atuação subversiva. Desconfio seriamente que a absorção de cerca de 50% de nosso parque industrial pelo poder público traz um ônus terrível para a Nação. A privatização liberá-la-ia desse ônus. Procuro aprofundar o assunto: não o consigo, porque me faltam os dados.

E assim por diante.

Do sofá em que estou ditando este artigo, parece-me ouvir algum especialista que me grita indignado: pois saiba que o ministério "X" publicou a tal respeito, na coleção "Y", um estudo técnico, profundíssimo do autor "Z". Ou que tal revista especializada, ou, ainda, a seção econômica de tal outro jornal divulgou precisamente há quatro meses e 25 dias quadros estatísticos acerca de vários desses pontos.

Minha resposta é que, como simples cidadão brasileiro, alheio embora a assuntos econômicos, devo ter ao alcance, claros e acessíveis, todos esses elementos, para que possa formar um juízo sobre os ditos assuntos. Pois se para cada tema do gênero, um cidadão brasileiro como eu deve ler monumentais e especializadíssimos trabalhos publicados em coletâneas maçudas, as quais é preciso procurar nas repartições públicas, será obrigado a passar sua vida pesquisando e estudando. O que traz como corolário sua morte por inanição. Como o cidadão pode não querer morrer, tem que desistir de informar-se. E impedido de informar-se, está impedido de pensar.

Assim, minha proposta é que os poderes públicos, os partidos políticos, as universidades e os meios de comunicação social estudem meios para me manter – e aos milhões de meus congêneres – fácil e seguramente informados de tudo isso.

Sem isto, não conseguimos pensar. Do que nos adiantam então as liberdades de falar, escrever e agir?

Ocorre-me uma idéia. É de, para impor esta larga divulgação, fundar um partido político. O nome dele nasce do tema: "Partido Dos Que Não Conseguem Pensar" - PDQNCP. Quem quiser inscrever-se nele, que comece por organizá-lo. Poderá até ser presidente dele. Será o mais necessário e urgente de todos os partidos.

Nota: Os negritos são deste site.


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