Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Jeito, Jeitão, Jeitinho

 

 

 

 

 

Folha de S. Paulo, 18 de janeiro de 1980

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A incoerência é – em uma mesma mentalidade ou em um mesmo texto – o choque entre uma verdade e um erro. Ou, pior ainda, o entrechoque de vários erros.

Começo por afirmar uma útil e saudável banalidade. É sempre louvável denunciar a incoerência onde quer que ela exista. Por exemplo, na experiência democrática que o Brasil vai levando avante. Pois tal experiência só terá autenticidade na medida em que, por sua vez, seja autêntica a democracia assim posta à prova.

Isto posto, arcam com pesadas responsabilidade, nesta quadra de transformações partidárias, os meios de comunicação social. Responsabilidade maior até do que a dos políticos. Pois a influência destes últimos sobre o público resulta em boa medida da cota de notoriedade que os meios de comunicação social lhes queiram conceder. E, se não quiserem perder essa cota, devem eles dizer habitualmente o que o Quarto Poder, isto é, o jornal, a TV e o rádio, deles querem. De sorte que, somando e subtraindo, o Quarto Poder tem uma política que serve de pauta aos próprios políticos.

Tenho a alegria em deixar registrado aqui quanto é nobre a inteira liberdade que a "Folha de S. Paulo" me dá, de escrever quanto minha consciência de brasileiro católico e tradicional me inspire para o bem do País e da civilização cristã. Muitas vezes, em sentido oposto à orientação genérica do jornal, hoje o maior de São Paulo. Conduta na qual este se mostra aliás altamente coerente com seus princípios básicos.

Isto dito de passagem, volto a minhas reflexões. A meu ver, está faltando coerência em vários aspectos do processo de democratização. O que compromete a força de persuasão dos resultados positivos ou negativos a que a experiência democrática possa chegar.

Aponto alguns:

1 – Nesta época de crise, em que convivem os problemas econômicos internos mais intrincados com os problemas internacionais mais sombrios, vejo largamente desinformada nossa opinião pública.

Bem compreendo a dificuldade de interessar o homem da rua nos meandros áridos da economia e das finanças estatais. Mas essa dificuldade, os propugnadores da abertura não podem considerá-la invencível. Pois do contrário afirmariam a impraticabilidade de informar o povo sobre os problemas-chaves do País. Ora, se a democracia é definida como o governo do povo, para o povo, pelo povo, ela seria então o governo dos desinformados, para os desinformados, pelos desinformados. Ou seja, o "non sense".

Assim, cumpre que os meios de comunicação social façam prodígios, obras primas, maravilhas, para oferecer ao povo uma idéia acessível, clara e atraente das grandes questões econômico-financeiras do dia.

Talentos não lhes faltam. Ademais, dispõe eles do famoso "jeitinho" nacional.

2 – Este tema levanta outro. Somos um povo emotivo. Um favor, uma atenção, por vezes um mero sorriso podem abrir-nos a alma. Mas, em sentido contrário, uma recusa, um esquecimento, um cumprimento vago e distante nos podem melindrar. Ora, pela própria natureza da democracia, um político deve ser um aglutinador de simpatias. A tarefa já é complexa, absorvente e extenuante para os políticos de base, absortos exclusivamente na aglutinação de seus próprios eleitores. Quanto mais ela o é para os políticos de cúpula, que, além de formar, manter e ampliar seu próprio eleitorado pessoal, ainda têm de aglutinar os aglutinadores de outros setores da população... Acrescente-se a tudo isso o caráter sempre mais absorvente dos cargos políticos, quer no Executivo quer no Legislativo, e se terá um quadro aproximativo do que seja a vida de um político brasileiro de 1980.

Como exigir que uma pessoa nessas condições seja ao mesmo tempo homem de estudo, enfronhado a fundo nos múltiplos problemas econômicos e financeiros (para só me referir a estes) do País? Como esperar que ele junte a tudo isso a missão pedagógica de pôr todas essas noções ao alcance do público?

Mas, de outro lado, com políticos sem informações nem estudos, o que pode esperar a "res-publica"?

3 – Para este problema só vejo uma solução. É a íntima convivência dos políticos com os cientistas e com os técnicos. Daí proviriam frutos preciosos, ou seja, políticos solidamente doutos e cientistas robustamente sensatos. Os políticos receberiam dos cientistas um rico substrato do indispensável para governar. E os cientistas receberiam dos políticos a experiência borbulhante da realidade cotidiana.

4 – Mas... ainda aí barreiras se levantam. Políticos e cientistas formam, no Brasil, greis que dificilmente se encontram. E, quando se encontram, raras vezes se entendem.

O feitio de espírito, a disposição temperamental e o estilo de vida do cientista são opostos, habitualmente "per diametrum", aos do político. Ademais, toda especialização é hoje ampla como um universo. Dentro desse universo, o pânico do cientista é ignorar algo de novo que se publique sobre sua especialidade. Pois se isso acontecer, o cientista terá perdido um gol no verdadeiro campeonato intelectual que é hoje uma carreira científica.

Se o cientista e o político se encontrarem para conversar, um e outro poderão pensar que estão esbanjando tempo. O político terá olhos postos nos eleitores que se vão "desaglutinando", enquanto ele conversa com o cientista. Este, por sua vez, lamentará o tempo perdido, enquanto seus colegas aprendem tranqüilamente e a fundo coisas que ele depois não terá tempo de estudar senão atabalhoadamente, para não perder a corrida.

5 – Vem de tudo isto nossa reformulação partidária tão vazia de conteúdo ideológico. O público acompanha com desinteresse o assunto. Pois ele não sente relação viva entre esses remodelamentos políticos e as matérias que realmente lhe interessam.

6 – Aqui ficam algumas verdades que todos conhecem, e poucos têm a coragem de afirmar.

Alguém me perguntará: e a solução? Não tenho obrigação de dá-la. Em outros países, como a Inglaterra, a França, a Itália, a Alemanha ou os Estados Unidos, se estes problemas não estão resolvidos, pelo menos estão menos crus do que entre nós.

Os especialistas que estudem isso para se inspirarem. Mas por favor lhes peço: não para copiarem. De cópias o País está saturado. Precisamos de uma douta e experiente originalidade. Do jeito, jeitão e jeitinho.


“Le Monde” e o “jeitinho"

Catolicismo, Setembro de 1992

Leo Danielle

Com bastante freqüência, aqueles que fazem esta revista têm o privilégio de assistir a conferências do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira sobre os acontecimentos da atualidade.

Nelas, a realidade no que tem de mais vivo entra em foco em todas as escalas, descendo quando oportuno das grandes cordilheiras aos menores pedregulhos.

Assim foi que, numa dessas reuniões, a atenção dos participantes viu-se solicitada a se fixar no jornal parisiense “Le Monde”, o qual tentava explicar para o público francês em que consiste o famoso “jeitinho” brasileiro.

– Mas, por que não me convidaram? perguntará talvez, de si para consigo, algum leitor.

– Não seja por isso. Em espírito, sente-se em nosso auditório e “ouça” um trechinho da reunião. Sinta-se em casa.

(Abaixo, as palavras do Prof. Plinio)

Os senhores todos sabem que a expressão “jeitinho”, lingüisticamente falando, nada tem de extraordinário.

Todo o mundo dá um jeito para ter um pouco de jeito. Um jeitinho é um jeito pequeno; não há nisso maior segredo. Mas, no caso concreto do “jeitinho brasileiro”, é um certo modo de fazer as coisas, que deixa muito intrigadas as pessoas de fora do Brasil. Elas percebem que há algo de especial e não sabem definir.

Lembro-me de um europeu que há uns vinte, talvez trinta anos atrás, esteve conosco no Rio de Janeiro. Falávamos de uma e outra coisa, e da indolência que se nota em certos brasileiros. Ele, que era assim um pouco espevitado, voltou-se para trás:

– Indolência! Mas os senhores ousam falar da indolência do brasileiro? Como é que se pode dizer isso de um povo que tem chauffeurs de lotação como os do Rio de Janeiro?

Fiquei pasmo. Ele acrescentou:

– Estive prestando atenção na conduta do motorista durante todo o percurso. Ele tinha nos vários dedos da mão diversas notas de diferentes valores. Sua mão era, assim, uma classificadora de notas em que já as punha todas dobradas de tal maneira que, quando precisava dar o troco ao passageiro, num instante o executava. Com a mesma mão, cheia de notas, mandava o trânsito parar, manobrava, e não caía uma só nota da mão dele. Depois, com essa mão carregada de notas, guiava o veículo a toda velocidade. E ainda fazia isso fumando um pouquinho e olhando o que se passava na rua com interesse. Isto o senhor chamaria indolência? Mas é uma super-vivacidade!

Ele não soube dizer: isto é o jeitinho. É o jeitinho no modo de fazer e de operar de um chauffeur. Mas que também se faz sentir em mil outras atividades ou situações em que o brasileiro se encontra.

Daí o espírito da definição que “Le Monde”, no dia 2 de junho deste ano (1992), publicou a respeito do jeitinho:

“Uma hábil solução, freqüentemente de última hora..."

É bem o jeitinho, não é?

"... que não acalma necessariamente os nervos, mas que retrospectivamente torna sem razão de ser a angústia dos neófitos”.

Para mim, a parte mais espirituosa da definição é o fim. Depois que o jeitinho resolve de modo brilhante um problema que angustiava, a pessoa percebe que ficou nervosa à-toa...

Apenas, seria interessante retificar um elemento da definição do “Le Monde”. É que o jeitinho não é uma solução, mas um processo para conseguir uma solução. Ou mais precisamente, é um determinado estilo de processo para conseguir uma solução.

A natural vivacidade desse chauffeur tinha uma não menos natural necessidade de expansão. Na monotonia do guiar o dia todo, essa vivacidade pedia a ele certo gesticular, certo jogo que o distraísse; daí, talvez, viera todo o resto.

*    *    *

A essa altura da reunião, o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira voltava aos grandes panoramas. Ao mesmo tempo em que o espaço reservado a esta coluna chegava ao fim.

Limito-me a dizer que o assunto está na ordem do dia e que retornarei a ele.


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