Plinio Corrêa de Oliveira

 

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 "Folha de S. Paulo"

 

 

 

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19 de maio de 1979

A mensagem de Puebla: notas e comentários – V (final)

“Hipoteca social”: só grava a propriedade?

Na parte final de sua mensagem à 3ª Conferência do Celam, João Paulo II diz que, fiel ao compromisso evangélico, "a Igreja quer manter-se livre em face dos sistemas opostos, para optar apenas pelo homem".

Em princípio, nenhuma corrente animada pelo respeito de si mesma diria o contrário, isto é, de que ela não opta pelo homem, mas por algum sistema. E isto, portanto, até mesmo em detrimento do homem.

Quais são estes "sistemas opostos" entre os quais a mensagem se recusa a optar? Diante do panorama ideológico e político de nossos dias, parece tratar-se do capitalismo e do comunismo.

Surge então uma pergunta. Dentro desse contexto, o que é precisamente uma recusa de opção de regimes? Tomados em consideração os ensinamentos tradicionais da Igreja sobre o comunismo e o capitalismo, é fora de dúvida que, tendo Ela censuras a fazer a um e a outro, as que Ela tem em relação ao regime comunista são tão mais amplas e graves do que as que tem relação ao regime capitalista, que a recusa de opção pede aqui uma indispensável matização:

a) a Igreja não opta por nenhum, no sentido de que qualquer deles contém elementos incompatíveis com Ela;

b) porém, as incompatibilidades com um dos regimes são tão mais amplas que as que tem com o outro, que se for forçada pelas contingências a ter como mal menor a instauração de um ou de outro, Ela deverá optar com ênfase pelo que constitui um mal muito menor (se bem que, nem por isso, um mal pequeno). Ora o trecho de João Paulo II, há pouco citado, por muito sumário, só por si não dá base para se afirmar tal. Entretanto, em outro tópico, imediatamente seguinte, a mensagem toca mais de perto na questão: "Nasce daí (da opção pelo homem) a constante preocupação da Igreja pela delicada questão da propriedade."

O direito de propriedade

O Pontífice passa a demonstrar que essa preocupação é de todos os tempos. E para tanto cita Santo Ambrósio (século 4º) e São Tomás de Aquino, cuja "doutrina vigorosa" tem sido "repetida tantas vezes". Fala em seguida dos documentos pontifícios de "nossos tempos", mencionando nominalmente as encíclicas "Populorum Progressio" e "Mater et Magistra". E conclui que esses ensinamentos precisam ser ouvidos "em nossa época, quando a riqueza crescente de uns poucos segue paralela à crescente miséria das massas".

Vistos em seu longo conjunto todos esses ensinamentos a que João Paulo II se refere, é fora de dúvida que eles afirmam o princípio da propriedade privada, cuja negação é absolutamente essencial para qualquer tipo de coletivismo, estritamente marxista ou não.

"Fora de dúvida" objetivamente, é claro. Pois subjetivamente, em nossa época, de quase tudo se pode dizer que não está "fora de dúvida". Ou seja, não faltam os que dão a certos "escritos dos padres da Igreja ao longo do primeiro milênio do Cristianismo", bem como à "Populorum Progressio" e à "Mater et Magistra" uma interpretação que deixa gravemente circunscrito, quando não cambaio, o princípio da propriedade privada.

Assim, muitos talvez encontrem nestas palavras de João Paulo II um pretexto subjetivo para continuarem a se professar contrários à propriedade privada, ou quase tanto.

Com algumas poucas frases, o Pontífice poderia ter desfeito essas interpretações, fonte de dolorosos conflitos de escolas de pensamento entre os fiéis. Pena é que não o tenha feito. Fica-me o direito de desejar que o faça na primeira ocasião.

A função social: só da propriedade?

João Paulo II não fica nisto, em matéria de propriedade privada.

No parágrafo imediato, ele afirma que essas desproporções entre riquezas e misérias conferem "caráter urgente ao ensinamento da Igreja segundo o qual sobre toda propriedade privada grava uma hipoteca social".

Esta é, com efeito, uma grande verdade, já ensinada por vários pontífices anteriores. Pode-se dizer que a função social da propriedade chegou a ser um lugar comum, um "slogan" de escritores católicos, e até não católicos, sobre assuntos sociais e econômicos.

Ainda aqui, entretanto, parece que as circunstâncias modernas estão a pedir uma maior precisão. À força de se repetir esse "slogan", esse venerável "slogan", formou-se no espírito de muitas pessoas a impressão de que o único direito a ter uma função social é o da propriedade. E esse direito faz figura raquítica, quando confrontado com os demais direitos humanos. Pois é o único sobre o qual pesaria a "hipoteca" da função social. Sobre os demais direitos não pesaria hipoteca. Ora, na realidade, todos os direitos têm uma função social. São todos "hipotecados" a essa função. O do trabalho por exemplo.

E graves inconvenientes se evitariam caso todos os titulares de outros direitos estivessem lembrados dessa "hipoteca". Assim, o direito de greve não teria levado, há meses atrás, os médicos, enfermeiros e funcionários de um importante hospital de Nápoles a abandonar o trabalho, deixando seus doentes em situação trágica, se soubessem que o belo mister a que se dedicam não tem apenas a função de lhes assegurar a subsistência, mas também a de velar pela vida dos doentes; ou seja, não só dos que tinham em mãos na ocasião da greve mas dos que, integrando o corpo social, viessem a precisar dos seus cuidados.

No momento em que o direito de propriedade reconhecido pelo pontífice (pois quem ensina que esse direito tem uma função pressupõe que tal direito existe: já que, se ele não existisse, essa função ficaria pendurada no vácuo) sofre a maior contestação da História, seria importante que, da parte da Igreja, tutora de todos os direitos, ele fosse cuidadosamente libertado dessa falsa aparência de raquitismo, quase de semi-ilegitimidade, com que as circunstâncias o vão desfigurando.

Estas são aspirações não apenas minhas, mas de milhões de fiéis a quem o perigo comunista gravemente preocupa.

Queira Deus que a elas se mostre sensível algum novo documento de João Paulo II.

Rumo às considerações finais deste tão longo comentário, passo sob silêncio a parte referente aos direitos humanos. Pois sobre eles não há (a não ser quanto à mais alta fundamentação doutrinária) disputas teóricas especialmente atuais e candentes.

E entro assim no tema final.

A teologia da libertação

Sem dúvida, o corpo de doutrinas que João Paulo II condenou tem por tema a libertação do homem em relação às contingências que tanto lhe pesam na existência terrena. Como essas doutrinas estão voltadas para a teologia – ainda que seja para chegarem a conclusões que são a negação de Jesus Cristo nessa matéria – resulta que podem chamar-se uma teologia da libertação.

Porém, parece-me excessivo deduzir daí que João Paulo II condenou toda e qualquer teologia da libertação. Pelo contrário, ele ressalvou formalmente um sentido de teologia da libertação. Eis suas palavras textuais:

"A Igreja sente o dever de anunciar a libertação de milhões de seres humanos, o dever de ajudar a consolidar esta libertação (E.N., n. 30); mas sente também o dever correspondente de proclamar a libertação em seu sentido integral, profundo, como o anunciou e realizou Jesus" (E.N., n. 31). "Libertação de tudo que oprime o homem, mas que é, antes de tudo, salvação do pecado e do maligno, dentro da alegria de conhecer a Deus e de ser por Ele conhecido" (E.N., n. 9). (...)

"Libertação que dentro da missão própria da Igreja não se reduza à simples e estreita dimensão econômica, política, social ou cultural, que não se sacrifique às exigências de uma estratégia qualquer, de uma práxis ou de um êxito a curto prazo" (E.N., n. 33).

"A fim de salvaguardar a originalidade da libertação cristã para as energias que é capaz de desenvolver, é necessário, a todo custo, como pedia o papa Paulo VI, evitar reducionismos e ambigüidades: "A Igreja perderia sua significação mais profunda. Sua mensagem de libertação não teria nenhuma originalidade e se prestaria a ser absorvida e manipulada pelos sistemas ideológicos e os partidos políticos" (E.N., n. 32). "Há muitos sinais que ajudam a discernir quando se trata de uma libertação cristã e quando, em vez disso, se nutre mais bem de ideologias que lhe subtraem a coerência com uma visão evangélica do homem, das coisas, dos acontecimentos" (E.N., n. 35).

O alcance da mensagem

Tudo isto posto, medido e pesado, é o caso de se perguntar que alcance tem a mensagem de João Paulo II para o futuro do Brasil, do continente latino-americano, e, por via de conseqüência, também do mundo.

A tal respeito, a justiça manda evitar duas afirmações peremptórias: - ela teve um alcance enorme, porque cortou o passo ao comunismo: - ela não teve nenhum alcance, porque deixou o caminho aberto ao comunismo.

Com efeito, ante o comunismo, a mensagem nem fechou inteiramente o caminho (e seria tão necessário que o tivesse feito), nem deixou o caminho inteiramente aberto. Como disse, ela lhe fechou um dos batentes da porta (o que não deixa de ser de certa utilidade).

Em última análise, o que mais importa no caso é saber qual foi, ante a mensagem, a reação quase unânime que tiveram os bispos reunidos em Puebla. E qual será, ante essa reação, a atitude de João Paulo II, a cuja soberana apreciação foi submetido o documento de mais de 200 páginas, que os prelados aprovaram no último dia de reunião.

Pois esse documento será o verdadeiro roteiro que os bispos hão de seguir. E, dada a mensagem como ela é, ao roteiro é que cumprirá traçar os efetivos rumos futuros.

Não é impossível que o documento dos bispos seja publicado com o "placet" de Roma antes mesmo de concluída a divulgação desta série. Em qualquer caso, proponho-me de o comentar para os caros leitores da "Folha".

Com menos pormenores do que os desta série, é claro. Pois há um grau de atenção, de minúcia de análise, de amplitude de comentário que, dentre os documentos saídos de mão de homem, ainda mesmo quando bafejados pela graça de Deus, os ensinamentos de um pontífice merecem a título absolutamente ímpar. 


Sumário

Tudo medido, pesado e contado, que alcance tem a mensagem de João Paulo II para o futuro do Brasil, da América Latina, e também do mundo?

A justiça manda evitar duas afirmações peremptórias: - ela teve um alcance enorme, porque cortou o passo ao comunismo; - ela não teve nenhum alcance, porque deixou o caminho aberto ao comunismo.

Com efeito, ante o comunismo, a mensagem nem fechou inteiramente o caminho (e seria tão necessário que o tivesse feito), nem deixou o caminho inteiramente aberto. Ela lhe fechou um dos batentes da porta (o que não deixa de ser de certa utilidade).


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