Plinio Corrêa de Oliveira

 

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 "Folha de S. Paulo"

 

 

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16 de setembro de 1978

O dique de mata-borrão

Conheci, nos remotos tempos de minha infância, muita gente respeitável. Este último adjetivo era então um rótulo que as senhoras de todas as idades e os homens de mais de cinqüenta anos como que usavam na fronte. Nem sempre merecidamente, é claro. Mas enfim, usavam-no.

Haveria hipocrisia em usar esse rótulo quando não fosse merecido? Sem dúvida. Não sei porém se, nessa matéria, o pior é a hipocrisia. Esta última, o Evangelho a estigmatiza com insistência e indignação. O que vale dizer que ela é um grande mal. Não necessariamente o pior dos males. Um escritor francês, não me lembro bem qual, afirmou que a hipocrisia é uma homenagem que o vício presta à virtude (*). Ao pensamento não falta "finesse" (subtileza).

Hoje as coisas mudaram. São incontáveis os ambientes em que a respeitabilidade é adorno tão velho quanto uma peruca empoada ou um chapéu de três bicos. Quase só timbram em usá-la os que são muito mas muito desacreditados. O pobre adorno de outrora serve então para tapar o sol com a peneira.

Mas há cinqüenta anos ou sessenta anos atrás, a respeitabilidade ainda fazia parte da moda. E, como eu ia dizendo, conheci, numa farfalhante mescla de autênticas e inautênticas, muitas pessoas respeitáveis.

À primeira vista, a grei dos respeitáveis me atraiu. Ela parecia refratária às estridências vulgares do "jazz", aos destemperos que Hollywood espalhava pelo mundo etc. Deitei pois neles a minha atenção. O que pensavam? Como encaravam o mundo novo do "après-guerre"? Que método usavam para conter a maré montante da não-respeitabilidade, da vulgaridade? Dei-me conta então de que, abstração feita das honrosas exceções de estilo, os respeitáveis eram fundamentalmente rotineiros, sentiam-se instalados em situações envaidecedoras num mundo farto, lento e cômodo. Em conseqüência, não tinham interesse em mudar nada. E também não queriam agir para evitar que qualquer coisa mudasse.

Entre eles e os que formavam a nova vaga daqueles velhos tempos havia um acordo mútuo: os da nova vaga não os escarneciam, não os incomodavam; simplesmente faziam uma reverência diante de sua respeitabilidade e passavam adiante. Os respeitáveis, de seu lado, deixavam que os da nova vaga fizessem o que bem entendessem. Quando muito meneavam a cabeça e murmuravam um pouco.

Às vezes, até, os respeitáveis sorriam de modo discreto. Lembro-me, por exemplo, do caso de uma senhora muito respeitável, que sorria contando aos íntimos a "última" de um filho pouco respeitável e muito folgazão. Saía ela de casa nas primeiras claridades da manhã, a fim de assistir missa e comungar. O ambiente de todas as igrejas era, naqueles saudosos tempos, da maior respeitabilidade. A senhora ia pois certo dia para a igreja. E quando atravessava o jardim em direção à rua viu algo que se movia estranhamente. Era seu filho, que voltava àquela hora para casa. Inteiramente bêbado, compreendeu ele, por entre as fumaradas do álcool, que não convinha que a mãe o visse naquele estado de degradação. Por isso escondeu-se atrás... de uma roseira. A mãe, envolta em sua respeitabilidade, achou preferível "não ver" o filho. Mas achou graça. E depois contava o caso, meio envaidecida, às amigas.

Ousar tudo, mas tanto quanto possível às ocultas, esta era a linha de conduta dos não-respeitáveis para com os respeitáveis. Permitir tudo, fingindo não ver, tal era a recíproca dos respeitáveis. Ninguém discutia. E assim o mundo foi deslizando lentamente para este atoleiro de 1978, ao qual não queriam chegar, então, nem os respeitáveis, nem os não-respeitáveis. Mas que muito provavelmente fascinava, no subconsciente, tanto a uns quanto a outros. A rã hipnotizada pela cobra caminha horripilada em direção a esta. Mas, ao mesmo tempo que horripilada, vai fascinada. E nada há que a impeça de seguir esse misterioso fascínio, rumo à morte.

Nesse sentido, lembro-me de um senhor muito "gentleman", muito respeitável, que criava em torno de si uma atmosfera arquetipicamente oposta à do comunismo. Entretanto, sua posição face ao comunismo era enigmática. Nunca o atacava. E quando, em torno dele, o tema se alongava tornando inexplicável seu silêncio, invariavelmente proferia ele, em tom sentencioso: "No Brasil não há motivo para se temer o comunismo; o povo não está maduro para isto". Eu tinha vontade de lhe bradar: "O que é este processo de maturação? O comunismo lhe parece um tumor que ainda não está maduro para estourar em pus, ou uma fruta deliciosa que ainda não está madura para atrair nosso apetite?"

Assim era os respeitáveis dos anos 20. Em cada década, a morte veio ceifando os respeitáveis e trazendo uma nova onda de quinquagenários que os substituíam. Estes eram então os homens que, quando jovens, se escondiam atrás das roseiras. Desse modo, os respeitáveis dos anos 20 foram substituídos, em suas poltronas, pelos dos anos 30, já bem menos ciosos de sua respeitabilidade. E assim sucessivamente.

Por esta forma, a respeitabilidade – que não analiso aqui senão enquanto mero adorno da vida social – foi desertando da vida.

Disse eu, a horas tantas deste caudaloso artigo, que o otimismo era o pára-vento dessa respeitabilidade. Acabo de pensar nesse otimismo ao ler interessantes artigos escritos no sisudo quinzenário londrino "East-West Digest", editado pela "Foreign Affaire Publishing Company" (edições da 2ª quinzena de dezembro de 1977, da 2ª quinzena de janeiro e da 1ª quinzena de março deste ano).

Esses estudos mostram como o "Labour Party", a agremiação política de esquerda no Parlamento britânico, foi sendo muito lentamente intoxicado pelo comunismo, a ponto de ser hoje a perigosa ponta de lança deste último no Reino Unido. O Partido Comunista é ali um corpúsculo de expressão eleitoral insignificante. Ele só vale – e vai valendo cada vez mais – porque cresce a todo momento o número já considerável de postos-chave que ele detém no poderoso "Labour". E agora, a julgar pelos estudos de "East-West Digest", o comunismo já é mais ou menos irreversível no âmago do trabalhismo.

Ora, era um dogma de muitos dos respeitáveis de meu tempo, que o trabalhismo nada tinha de comunista. Pelo contrário, constituía a maior garantia de que o comunismo não pegaria na Inglaterra tradicional.

Essa mesma respeitabilidade otimista, no Brasil como por toda parte onde existe, acha que os esquerdismos mais ou menos moderados são o dique do comunismo. E quanto mais o dique se torna robusto, mais consideram distante o comunismo. Até o momento em que se derem conta de que, em relação ao comunismo, as esquerdas são diques de mata-borrão. Quebram-lhe os vagalhões, mas se deixam embeber pelas suas águas. De sorte que, ao cabo de algum tempo, o dique atua como um filtro, e deixa porejar água na área que deveria defender.

Mas isto, os respeitáveis de outrora não viam. Como não o vêem seus sucedâneos de hoje, tantos deles especialistas ultratécnicos em assuntos internacionais...

E assim avança o comunismo. Com a ajuda de algum "respeitável" leitor "mata-borrão", o qual, se ler este artigo, vai amarrotá-lo e exclamar indignado: "Façamos calar este homem, pois nesta época de liberdade, não é tolerável que digam coisas dessas..."

Como se a democracia não fosse o direito de discordar!

(*) “Les Maximes de La Rochefoucauld”, N. 218: "L’hypocrisie est un hommage que le vice rend à la vertu."


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