Plinio Corrêa de Oliveira

 

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 "Folha de S. Paulo"

 

 

 

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22 de setembro de 1974

Sobre Cuba

Uma apreciação imparcial da atitude do Governo brasileiro ante a suspensão das sanções contra Cuba leva a aplaudir alguns aspectos da atuação do Itamaraty realmente dignas de nota.

Foi prestigioso para nós que Kissinger tenha enviado o secretário-assistente H. Schaundeman em missão reservada, para tratar do assunto com o chanceler Azeredo da Silveira.

Acresce notar que a modificação à proposta da Venezuela, Colômbia e Costa Rica, sugerida pelo Brasil, foi objeto de uma acolhida geral muito favorável. E isto constitui mais um marco de prestígio para o País.

Como todos sabem, o chanceler Azeredo da Silveira propôs que, antes de ser suspenso o embargo contra Cuba, fosse elaborado um relatório sobre eventuais garantias a serem dadas por Fidel Castro, de que respeitará daqui por diante o princípio da não-intervenção, e cessará de disseminar a subversão na América Latina.

Era altamente estranhável a omissão desta cautela elementar, na proposta da Venezuela, Colômbia e Costa Rica. A sugestão brasileira veio remediar a lacuna.

E teve outra vantagem. Enquanto esse relatório se elaborar, ficará adiada a suspensão do embargo: primeiro passo, talvez, para sua definitiva rejeição.

Tal efeito protelatório terá sido a meta capital do Itamaraty? – Espero-o. E comigo incontáveis outros brasileiros. Pois, a meu ver, acerca do congraçamento com Cuba cabem as mais graves objeções, quer do ponto de vista doutrinário, quer prático.

* * *

Alegra-me conjeturar que tenha sido por motivos de mera estratégia diplomática que nossa Chancelaria tenha alegado contra a suspensão do embargo o mero princípio da não-intervenção. Quando as negociações estiverem mais adiantadas, o Itamaraty – assim espero – deixará ver que, em uníssono com todos os verdadeiros brasileiros, se move sob a inspiração de outros princípios também. Pois a não-intervenção, erigida como máxima única no caso cubano, redundaria num egoísmo “à outrance” (demasiado, n.d.c.), no qual não reconheceria a própria face o povo brasileiro, cristão, bom e profundamente amigo dos irmãos latino-americanos. Procurarei explicar-me em poucas palavras.

Li na imprensa cotidiana o caso de um prisioneiro de La Cabaña que em virtude de explosão ocorrida quando desembarcava na ilha, ficou cego e privado de um braço. Este infeliz recusa-se a sair da prisão enquanto lá reste um só companheiro de infortúnio, ainda não libertado. O gesto inspira respeito e admiração. Revela um homem que não pensa só em si, porém também nos outros.

Sentimento bem diverso despertaria a política que, olvidada dos outros – do povo cubano empobrecido, torturado, martirizado – cogitasse tão só do interesse próprio, por mais legítimo que seja.

Exclusivismo nacionalista tão ferrenho seria, aliás, absolutamente anacrônico, numa época em que as atenções se voltam cada vez mais para o bem comum do gênero humano e – na linguagem laica da ONU e de documentos pontifícios pós-conciliares – para os direitos do homem.

Não posso crer que o Itamaraty venha a adotar conduta tão discrepante do que pensa, quer e espera o povo brasileiro.

* * *

O ponto central de todo o tema está em que suspender o embargo contra Cuba importa em facilitar a sobrevivência do regime marxista na ilha. E isto acarretaria o sacrifício do povo cubano, em troca de termos um pouco mais de sossego em casa.

Ora, uma nação da importância do Brasil, com um regime dotado de todos os meios para reprimir o terrorismo, e ao qual toca a glória de o haver efetivamente exterminado, precisaria imolar os direitos do povo cubano, para conseguir que aquela pequena ilha não pusesse em polvorosa nosso imenso território?

Objetará alguém que meu argumento é vão, pois de fato a polvorosa aqui existiu precisamente a partir de Cuba.

Na realidade, governos culpados permitiram que da Rússia, como da China e de Cuba, a subversão se introduzisse entre nós. Mas, à custa de enormes sacrifícios, foi esta eliminada gradualmente, depois de 64. – Será que, dez anos depois, é preciso suplicar a Cuba que não intervenha no Brasil, e abandonar para isto à sua triste sorte o povo cubano?

* * *

Outra razão que leva a supor um caráter meramente protelatório, na judiciosa e oportuna “démarche” (iniciativa, n.d.c.) do Itamaraty, é que esta pede a constituição de uma comissão para elaborar um relatório sobre se há em Cuba condições que garantam a não-intervenção.

Ora, isto é apurar o óbvio. Pois óbvio é que Cuba vive sob um regime tirânico, de intervenção agressiva e total na vida privada dos próprios súditos. – Como pode esse regime, agressivo ad intra, não ser visceralmente agressivo ad extra?

Em relação ao nazismo, sempre se entendeu que seu cunho tirânico tinha como corolário necessário uma política imperialista. – Por que a mesma lógica não valeria agora para o caso de Cuba?

Visou, portanto, mais do que isto, a sugestão de nossa Chancelaria.

* * *

Objetar-se-ia que a dúvida brasileira sobre a prática da não-intervenção por parte de Cuba carece de base, porque as condições internacionais mudaram graças à “détente” (distensão, no caso concreto, política, n.d.c.) em que Nixon deitou toda a sua confiança. E que, portanto, os comunistas de Moscou, patrões dos de Cuba, já não são imperialistas. A meu ver, ao ver de todos os brasileiros, a capacidade diplomática do Itamaraty está incomensuravelmente acima da do malogrado Nixon, cuja personalidade não fez autoridade entre nós. A “détente” é hoje fortemente questionada até nos países cujos governos a praticaram mais marcadamente (Alemanha, EUA). No Brasil, só a toma a sério a faixa de opinião que vai do esquerdismo católico até o esquerdismo ateu. Do ateísmo... católico até o ateísmo... ateu, sou tentado a dizer.

Ora, esta faixa constitui uma minoria quase circunscrita a certos salões snobs e a certas sacristias ávidas de brilharetes demagógicos.

Aceitar a “détente” como um fundo de quadro inquestionável para justificar a suspensão do embargo de Cuba, é pois coisa que nossa brilhante Chancelaria tem toda a razão de não aceitar.

* * *

Para encerrar, proponho a nosso ilustre e valoroso chanceler, que a comissão a ser constituída para averiguar as disposições de Cuba peça, como único meio idôneo, a realização de eleições livre, sob as vistas de observadores internacionais, entre os quais do Brasil. Seria dado aos cubanos exilados o direito de regressar para votar. E seria concedida, durante quinze dias – só isso já bastaria – liberdade para que a oposição dissesse o que entendesse em Cuba. Feita a apuração dos votos, prevaleceria o que a Cuba autêntica pensa e quer. O governo daí nascido, este sim, teria condições de governar sem agressão interna nem externa, e de praticar uma autêntica não-intervenção.

Aceitará isto Fidel Castro? Se não aceitar, oferece ele realmente condições para que se creia na sinceridade de seu espírito não agressivo?

Em tal caso, a admissão de Cuba no concerto das nações latino-americanas trará a outorga de um lugar para a Rússia, nas assembléias do Hemisfério.

Pois se Fidel Castro não tem apoio interno, só pode viver de apoio externo. E esse apoio só lhe poderá vir da Rússia.

Assim, muito paradoxalmente, a suspensão do embargo terá dado à Rússia um meio diplomático cômodo, de praticar a intervenção em todos os assuntos do Continente.

A suspensão do embargo, anunciada sob o signo da não-intervenção, acarretaria como consequência... a intervenção sistemática e oficial.

É o que o Itamaraty deve a todo o custo evitar.


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