Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

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 "Folha de S. Paulo"

 

 

 

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13 de janeiro de 1974

Os auto-indulgentes

A indulgência é uma virtude que conta com a simpatia de todos. Das pessoas íntegras, porque está no conceito de integridade amar e praticar todas as virtudes. Das pessoas que não são íntegras, porque é muito vantajosa a indulgência, para os que têm culpa no cartório.

Bem entendido, os íntegros praticam a indulgência principalmente para com os outros. E os que não são íntegros a praticam especialmente para consigo mesmo. Esta diferença de matizes tem sua importância, pois é raro encontrar quem deposite uma desanuviada confiança em quem prima pela indulgência para consigo mesmo. Por exemplo, a indulgência para consigo não é uma virtude que folguemos em encontrar nas pessoas a quem confiamos o trato de nossos interesses materiais.

Entretanto, esta regra tem exceções. Por exemplo, na Geórgia. Tive notícia de que nessa pequena república de cerca de cinco milhões de habitantes, federada à viva força a assim chamada União Soviética, a indulgência para consigo mesmo vem sendo praticada em larga escala; de um modo que tem meu mais irrestrito aplauso. Julgue o leitor se estou com a razão.

Como todos sabem, cada homem é dono de si mesmo. E, portanto, é dono de sua própria capacidade de trabalho. Em consequência, também o é do fruto dessa capacidade, ou seja, do fruto do seu trabalho. Assim, cada homem tem um direito natural imediato sobre o que produz. E a violação desse direito é designada por uma palavra muito conhecida: roubo.

Pouco importa que esse direito seja violado por outra pessoa ou pelo Estado: continua sempre a ser roubo. Pois tanto os Estados quando os indivíduos estão sujeitos ao 7º mandamento: não furtar.

Pensam de modo exatamente oposto os marxistas. No regime comunista, todo produto do trabalho dos particulares pertence ao Estado. É um Estado-Ladrão, que ufanamente se proclama tal.

Talvez os georgianos tenham conhecimento do adágio "quem rouba ladrão tem cem anos de perdão". O fato é que, aos poucos, a população foi escapando do regime comunista, e restaurando largamente a propriedade privada. Isto, bem entendido, com "prejuízos" dos cofres públicos, "donos" de tudo quanto os georgianos produzem.

Com isso, vêm aparecendo no litoral da Geórgia numerosas residências estivais alegres e confortáveis, em que se instalaram quatro mil famílias. Isto destoou da pobreza sombria e uniforme da atmosfera comunista e despertou assim da modorra burocrática, o PC local. Este, então, através de seu órgão "Farya Vostoka", vituperou o luxo babilônico das criminosas vivendas. O jornalzinho se mostrou especialmente furioso porque várias daquelas moradas chegavam a ter piso de mármore no banheiro e, ó escândalo!... sala de bilhar. Enquanto, ressaltava o órgão vermelho, faltavam habitações para a classe média e para escolas. É o que conta o "Time" de 3 de dezembro p.p.

Da minha parte, estou a ver os robustos georgianos, a considerar com comprazida indulgência a moradia adquirida com o produto do seu trabalho, e dando de ombros com uma gargalhada sonora, para a acusação do jornalzinho. – Que culpa têm os donos dessas residências "luxuosas", se por incapacidade do regime, faltam escolas e habitações? Deveriam eles, por amor ao próximo, sacrificar a sua própria moradia? Ou pelo contrário, o amor ao próximo os deve inspirar o propósito de sacudir o jugo do regime comunista, que não faz senão produzir pobreza? Ora, o modo mais direto de sacudir este jugo consiste em que cada um vá transgredindo o regime o quanto possa. É abrir caminho para o avanço geral libertador. O "Time" chama esta categoria de lúcidos e desinibidos transgressores, de auto-indulgentes. Neste caso, viva a auto-indulgência! – Não parece ao leitor?

Tenho apenas uma reserva. – A expressão "auto-indulgentes" será exata, neste caso? Para mim, só se pode falar, no caso, de autojusticeiros: aplicam a justiça por suas próprias mãos, em um país em que não há nenhum outro modo de a obter do Estado.

Nota: Os negritos são deste site.