19 de março de 1972
Inoculando cinismo
O
recente restabelecimento de relações entre Londres e Pequim é uma
decorrência do comunicado de Xangai. Uma vez que a América do Norte
restabeleceu contatos esporádicos com a China vermelha, a Inglaterra,
sempre pragmática, resolveu ir ainda mais longe. Daí seu
restabelecimento de relações regulares com os mandarins comunistas.
Assim
sendo, é natural que se faça uma comparação entre a atitude da China
respectivamente face aos Estados Unidos e face à Inglaterra.
Durante a estada de Nixon em Pequim, o caso de Formosa foi um dos
maiores óbices para um entendimento dele com os chineses. A China
reivindicava o direito de recuperar Formosa sem dar satisfações a
qualquer outro país. Com isto não podiam concordar os norte-americanos.
E assim a questão ficou posta em termos indecisos no Comunicado de
Xangai.
Logo
em seguida, se apresentou a Inglaterra para negociar o reatamento
diplomático com a China vermelha. Ora, para o êxito dessas negociações,
havia um óbice mil vezes mais grave. Era Hong Kong, colônia inglesa
muito mais importante do que Formosa, e ademais encravada na carne viva
da China, isto é, no próprio território continental chinês.
A
lógica levaria Pequim a fazer à Inglaterra, a propósito de Hong Kong,
exigências mais peremptórias do que as feita aos EE.UU a propósito de
Formosa.
É bem
verdade que os britânicos se encontram em Hong Kong em razão de um
tratado regularmente firmado entre o governo britânico e o governo
imperial chinês, antecessor da camorra que atualmente governa em Pequim.
Todos sabem, porém, que Pequim é essencialmente anticolonialista, e que,
segundo a filosofia da China vermelha, nada é mais decrépito do que o
tratado anglo-chinês estabelecendo o enclave de Hong Kong.
Não
obstante, com um desembaraço perfeitamente cínico, Pequim — logo depois
de ter quebrado as lanças pela "libertação" de Formosa — deixa claro que
continua a aceitar a presença inglesa em território chinês!
Meu
objetivo não consiste em investigar qual o interesse escuso de Pequim
nisso. Registro só quanto a contradição e o cinismo se vão tornando
rotina na vida internacional contemporânea.
Em
todos os tempos, a diplomacia foi marcada por contradições e descaradas
manifestações de cinismo. Porém haveria exagero em dizer que eram de
rotina. O mais grave dessa "rotinização" é a indiferença que encontra
nos grandes meios de comunicação social, nos estudiosos de assuntos
políticos, nos moralistas, etc.
Trata-se de uma indiferença resultante ora da conveniência, ora do
desalento.
O
resultado desta indiferença — tão generalizada que não me chegou ao
conhecimento um só comentador político de rádio ou de imprensa que se
tenha ocupado com o caso — é que ela vai produzindo sobre a opinião
pública o efeito mais nocivo. Vendo que ninguém comenta essas
aberrações, o homem de hoje fica sujeito ao risco de as achar naturais.
E com o tempo, a opinião mundial irá descambando pela rampa da
insensibilidade moral.
* * *
Outra
aberração, se bem que de gênero um tanto diverso, vai sendo praticada na
Itália pelo Partido Comunista.
Os
jornais tem noticiado que o contínuo apoio prestado pela
democracia-cristã à esquerdização da Itália vem desgostando boa parte do
eleitorado. A prova tangível desse fato é o continuo crescimento do
eleitorado neofascista.
Agora, a Itália está em fase de campanha eleitoral. E para os
comunistas, um dos objetivos mais essenciais é conseguir que os
candidatos da democracia-cristã recuperem as parcelas do eleitorado
anticomunista que esta vem perdendo. Uma vez eleita pelos anticomunistas
uma numerosa bancada democrata-cristã, ela poderá entregar-se, por mais
alguns anos, à sua política de favorecimento do comunismo.
Mais
alguns anos... Não seria preciso tanto para a DC consumar a entrega da
Itália aos vermelhos, através da formação de um aberrante governo
comuno-católico!
—
Como, pois, reabilitar a DC aos olhos dos eleitores anticomunistas?
—
Este um dos grandes problemas do PC nas próximas eleições.
O
artifício encontrado pelos comunistas é cínico. Os órgãos de publicidade
do PC se puseram a declarar, inopinadamente, que sendo a DC o maior
partido na Itália, o empenho máximo do comunismo consiste em
disputar-lhe os votos.
Daí
decorre naturalmente, para o eleitor anticomunista ingênuo, a impressão
de que o modo mais eficaz de combater o comunismo é votar na
democracia-cristã.
Assim, o comunismo, investindo contra a DC, alcança ao mesmo tempo dois
resultados:
1 -
Arranca, em benefício próprio, o maior número possível de esquerdistas,
eleitores da DC;
2 -
Canaliza para a DC o maior número possível de votos direitistas.
Com
tal jogada, o Partido Comunista estufa quanto pode a sua própria
representação, e prepara as condições para que a democracia-cristã lhe
entregue algum dia o poder. Precisamente como fez no Chile a democracia
cristã.
É o
fruto dessa cínica mudança de atitude do PC, de bom comparsa a "pseudo
inimigo" da DC.
* * *
E
encerro agora estabelecendo um elo entre meu comentário sobre o cinismo
do governo comunista de Pequim, e o análogo cinismo do PC italiano.
Não
espanta o cinismo dos comunistas. Ele está na essência de sua doutrina.
Acentuo, entretanto, que o cinismo se está tornando rotineiro na
diplomacia dos países ocidentais, sobretudo pela ação do comunismo.
Ora,
como vimos, essa avançada do cinismo exerce uma ação profunda sobre as
massas do Ocidente, pondo-as em contradição consigo mesmas, e ameaçando
deteriorar-lhes o senso moral.
— Não
haverá nisso uma vantagem a mais para o comunismo? — A deterioração
moral do adversário sendo uma condição inestimável para a vitória do
comunismo, parece-me que a resposta não pode deixar de ser afirmativa.