Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

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 "Folha de S. Paulo"

 

Janeiro de 1979 - Almoço oferecido pela "Folha de S. Paulo" aos colaboradores de sua secção "Tendências e Debates". Vê-se o prof. Plinio Corrêa de Oliveira à esquerda do diretor do jornal, Octávio Frias

14 de março de 1971

A chantagem do "comunismo ateu"

"A História é a mestra da vida", afirmou Cícero. Para compreender certos aspectos, dos mais palpitantes, da realidade moderna, nada é mais útil do que estudar situações análogas ocorridas no passado.

Como se sabe, ao longo dos vinte séculos de existência da Religião Católica foram surgindo sucessivas heresias. Delas, a mais recente é o progressismo, revivescência mal disfarçada do modernismo condenado por São Pio X, no início deste século.

A respeito do modo por que as diversas correntes heréticas se separam da Igreja, o grande público possui noções vagas e, não raras vezes inexatas. Exemplifico. A maior parte das pessoas imagina que a ruptura de Lutero com a Igreja se deu em quatro lances: 1) ele elaborou uma doutrina contrária à católica; 2) em seguida, dando-se conta do contraste ideológico, revoltou-se, rompeu com a Igreja e constituiu a seita evangélica; 3) em conseqüência, a Igreja o ameaçou de excomunhão, caso não abjurasse seus erros; 4) Lutero perseverou na sua posição doutrinária, a excomunhão foi efetivada e a separação se consumou. Assim, Lutero teria saído da Igreja porque quis, quando quis e como quis. Deixou-a como o filho pródigo abandonou a casa paterna, isto é, às claras, com um franco aviso prévio ao pai.

A História nos ensina, entretanto, que quer no caso de Lutero, quer no de vários outros grandes heresiarcas, o esquema do processo de separação foi bem menos simples. A causa disto está em que certos heresiarcas — talvez a maioria deles — não quis, de modo algum, sair da igreja aos urros e batendo a porta. Seus objetivos eram por demais diplomáticos e sutis para que escolhessem via tão simplória. Preferiam eles ficar enquistados na igreja e espalhar veladamente a heresia entre os fiéis. Se o sistema desse resultado, os heresiarcas poderiam chegar a infiltrar de alto a baixo todas as estruturas da Igreja.

Por isto, esses fundadores de heresia, embora cientes da incompatibilidade de seu pensamento com o católico, procuraram formular suas sentenças heréticas em termos conciliáveis — na aparência — com a teologia ortodoxa. Com efeito, se não empregassem tal precaução, poderiam facilmente ser identificados e condenados como hereges. Contra eles e sua doutrina se voltariam todos os católicos. O processo de infiltração teria "ipso facto" cessado, e os heresiarcas correriam o risco de não arrastar consigo senão um punhado de apóstatas.

Assim postas as coisas, não é difícil compreender quais os marcos do processo de ruptura dos heresiarcas mais sutis, com a Igreja: 1) o heresiarca engendra sua doutrina heterodoxa e lhe dá uma formulação à primeira vista, ortodoxa; 2) o heresiarca põe em circulação seu erro camuflado e aparecem, em conseqüência, adeptos desprevenidos, que são reunidos em grupinhos de "arditi"; 3) a estes é ensinado clandestinamente o erro nu e cru, mas se lhes recomenda que o divulguem veladamente; 4) Como, por esta forma, a nova seita se dilata, erguem-se vozes, entre os católicos genuínos, denunciando a heresia nova; 5) os adeptos desta se defendem, sustentando que são ortodoxos e que estão sendo objetos de calúnias; 6) a Igreja examina a controvérsia, declara herética a doutrina nova, cujos adeptos excomunga.

Assim, há um gênero de heresiarcas e de hereges que não se lançam para fora da Igreja, mas visam, isto sim, ficar dentro dela para pescar em águas turvas. É preciso extirpá-los à viva força, pela aplicação das penas espirituais.

A índole peculiar a esses sectários explica que o seu processo de separação em relação à Igreja, por vezes nem sequer termine com a excomunhão. Condenada a heresia, esta morre na aparência. Mas dentro em pouco renasce, mais uma vez... dentro da Igreja. Por exemplo, condenado pela Igreja o arianismo, a célebre heresia do séc. IV, a seita ariana se desfez. Mas pouco depois renasceu nas próprias fileiras católicas, apresentando formulações que camuflavam doutrinas menos radicais que as de Ário, mas inspiradas pelo pensamento deste. Surgiu assim o chamado semi-arianismo.

Foi preciso, em conseqüência, que a Igreja levasse a cabo um novo esforço de detectação, caracterização e condenação desse novo ardil herético, extirpando assim o câncer que nela renascera.

- Qual é a mais alta ambição de uma heresia velada? O que esperam seus líderes, dessa tática de infiltração? — Não é simplesmente o recrutamento de muitos adeptos entre os fiéis. É de trazer para seu lado, sacerdotes, bispos, cardeais, e até, se o pudessem conseguir, algum papa. A tal extremo podem chegar os sonhos de dominação dos hereges!

* * *

Foi bem diverso o processo de formação do comunismo. Seu fundador não foi um católico. Seus adeptos se recrutaram entre pessoas que jamais haviam tido fé, ou que a tinham perdido inteiramente. E sempre que a seita marxista fazia novos recrutas, estes rompiam às escâncaras com a Igreja.

Mas parece evidente que o comunismo, em nossos dias, está mudando de tática, e vai procurando imitar, pelo menos em larga medida, a manobra sutil das heresias veladas. Em outros termos, em nossos dias o marxismo vai tomando ares de sacristão, e procura inviscerar-se na Igreja para a conquistar. Reconhecendo-se fracassado nos 100 anos em que lutou contra Ela de fora para dentro, procura agora matá-la de dentro para fora.

- Como se passa isto? — De mil modos. Não disponho aqui do espaço necessário para descrever, em todos os seus aspectos, a imensa manobra. Contento-me em dar dela um traço característico.

E chegamos assim à chantagem do "comunismo ateu". Esta expressão é legítima, e se encontra nos documentos pontifícios. Funda-se ela no fato de que o comunismo é um extenso tecido de erros, do qual o mais grave e marcante é o ateísmo. Lógico é, assim, que seja corrente designá-lo como "comunismo ateu".

Agora, entretanto, os setores católicos impregnados de influências comunistas começam a interpretar capciosamente a expressão. Se os papas condenam o comunismo ateu — argumenta-se nesses círculos — é só porque ele é ateu. Logo, se houver uma corrente comunista não atéia, claro está que, contra ela, a Igreja não tem a menor objeção.

A chicana — pois se trata de uma evidente chicana — implica em afirmar que, no comunismo, os papas jamais condenaram outra coisa, senão o ateísmo. Basta ler os documentos de Leão XIII, por exemplo, para ver que isto é inteiramente falso. De fato, a Igreja também condena as concepções políticas, sociais e econômicas do comunismo, e um católico autêntico não as pode aceitar ainda que sejam apresentadas sem qualquer vinculação com o ateísmo.

Assim, por exemplo, afirmar a ortodoxia de um programa de reforma social inspirado pelo comunismo, que inclua o divórcio, o amor livre e a total promiscuidade nas relações sexuais é contrário frontalmente à moral católica. E isto ainda quando os propugnadores dessas reformas freqüentassem os sacramentos.

O que digo da promiscuidade de sexos vale igualmente para a comunidade de bens, ou seja, para um regime econômico que exclua a propriedade individual. Se alguém diz crer em Deus, mas deseja a implantação desse regime, está contra a Igreja.

- O que lucra a propaganda comunista com essa escamoteação doutrinária levada a cabo pelo abuso da expressão "comunismo ateu"? — Ela consegue criar, desse modo, para incontáveis católicos, a ilusão de que, posto à parte o ateísmo, no mais podem ser comunistas. O que é uma perfeita impostura.

E à medida que essa manobra desleal seguir seu livre curso, teremos um comunismo inviscerado nos meios católicos, como outrora tivemos o arianismo ou protestantismo nascentes.

Diante deste panorama, os católicos autênticos estarrecem de horror. E riem-se os comunistas. Pois quem os extirpará dos meios católicos, se se confirmar a notícia de que a Igreja já não excomungará ninguém? — Que suprema vantagem trará para o neocomunismo "católico" essa eventual renúncia à excomunhão!

* * *

Uma informação para os leitores, a título de "post scriptum": não recebi uma só carta de protesto contra as afirmações de meu último artigo...


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