23 de
maio de 1971
Aturdimento, passo para a derrota
Impressiona-me um contraste. De um lado, as informações postas ao
alcance do público jamais foram tão fartas. De outro lado, jamais este
se sentiu — creio eu — tão átono e embaraçado diante delas.
Fixo
um termo de comparação remoto, para que o contraste possa ser mais bem
sentido. Antes da II Guerra Mundial, o leitor médio era largamente
informado pelos jornais acerca do que de mais importante ocorria, não só
em seu próprio país, como também na Europa e nos Estados Unidos. Em
segunda plana, como quantidade e importância de material informativo,
vinham as demais regiões da civilização ocidental, isto é, as três
Américas, a Austrália e a África do Sul. Ainda na mesma plana, estava, a
impor-se por sua importância política e econômica, o Japão. Em terceira
linha figuravam as notícias, raras, referentes aos demais povos: um
ciclone, uma inundação, o casamento ou o divórcio de um monarca, uma
revolução ou uma guerra. Eram fatos rumorosos, que espoucavam num mundo
imenso e confuso, que dormia... ou parecia dormir. E que, assim como por
lá explodiam, por lá mesmo se consumavam e sumiam.
Se a
área abrangida pelo noticiário farto era bem menor do que hoje, a índole
das notícias era bem mais clara e risonha. Os Estados Unidos, no auge da
prosperidade, desfrutavam o que os americanófilos de todos os países
consideravam, deslumbrados, as maravilhas e as delícias do "american way
of life". Na Europa, resplandecia uma ordem de coisas na qual se fundiam
o prestígio dos séculos idos com o da ciência, da técnica e do conforto
contemporâneos. Ora os telegramas falavam de recordes de velocidade, de
eficiência ou de extravagância batidos na terra de Tio Sam, ora de
livros sensacionais ou "avant-premières" deslumbrantes nas grandes
capitais européias. Ou então de estações turísticas que chegavam ao
auge, de achados arqueológicos que revelavam mundos novos, ou de debates
parlamentares insignes que se travavam na velha Europa. Toda esta
baralhada brilhante e otimista dava um ar de mundo em festa, a que no
Brasil nos associávamos como podíamos, com nossas altas de café, nossas
viagens ao Exterior, nossas festas domésticas e a glorificação dos
artistas e intelectuais da casa: Rui ("a Águia de Haia"), Bilac, Oswaldo
Cruz e tantos outros.
O
noticiário apresentava também sombras no quadro. Mas estas serviam em
boa parte para o tornar mais animado ainda. Hitler rugia, o Duce
carrancudo arengava as tropas que partiam para a Etiópia. Um vento frio,
de crueldade, cinismo e irreligião, soprava da Rússia. A Inglaterra
continuava na fleugma triunfal de sempre, mais ocupada com episódios
como o do casamento de Eduardo VIII do que com os problemas que se
acumulavam no horizonte. A figura decorativa de Pio XII, "gloriosamente
reinante" (tal era a bela fórmula oficial então usada), pairava em paz
sobre as imensidões da Igreja. A França se divertia, e deixava correr os
dias. A Espanha cicatrizava dos efeitos da guerra civil. E Portugal se
ia reorganizando passo a passo.
Estas
são "pêle-mêle", algumas visões, cronologicamente desencontradas, que
nos dão algo do brilho, do dinamismo, da precariedade também, daqueles
idos distantes.
Digo
da precariedade, porque as crises, as tensões e os fatores de
descontentamento não faltavam, mas eram — pelo menos em boa parte —
relegadas para um canto do quadro. Na parte central deste, as coisas
eram claras. Havia um mundo comunista e um anticomunista. No primeiro —
isto é na Rússia — a paz das prisões e dos sepulcros. No segundo, o
florescimento da civilização... No mundo não comunista, os PCs tentavam
jogar tudo por terra: era a esquerda. Os nazismos tentavam liquidar os
PCs e implantar imperialismos frenéticos: era a direita. As democracias
organizavam a vida boa e a fruíam. Era o centro. A partir destas
posições bem claras, decorriam lutas lógicas, cujos lances podiam ser
acompanhados facilmente por todos. Nelas, cada qual sabia claramente
onde colocar suas preferências. E era, por assim dizer, torcedor de um
time bem identificado.
--
Panorama claro? — Sim, claro e simples. Ou melhor, simplório. Os
problemas reais eram subestimados ou silenciados. As realidades de
subsolo eram quase desconhecidas. E esta mutilação da realidade nos
noticiários foi um erro. Pois se o público tivesse tido conhecimento da
verdade total talvez tivesse imposto aos acontecimentos um outro curso.
* * *
Depois da II Guerra Mundial, e muito especialmente em nossos dias,
aconteceu o contrário. Veio tudo à tona. Noticia-se tudo, a respeito de
todos os países. E segundo uma tabela de valores bem diversa.
As
fricções entre as repúblicas africanas ocupam mais espaço que uma queda
de gabinete na Suécia. A rivalidade franco-alemã quase desapareceu, mas
a luta do Vietnã, a tensão nas duas Coréias, as lutas entre árabes e
judeus, as tensões e distensões entre russos e chineses, o
descontentamento dos tártaros na Criméia, a concentração nudista na Ilha
de Whight, os hippies que promovem contestações-bomba nos Estados
Unidos, o Arcebispo de Paris que protesta contra a punição dos
desordeiros sacrílegos na Basílica do Sacre-Coeur, o Ministro da Defesa
da Alemanha Ocidental que compra trinta mil redinhas para conter as
longas melenas femininas dos soldados do Exército alemão, a última
proeza dos terroristas de vários tipos (pois há um terrorismo de sangue,
como há o terrorismo publicitário, ou ainda o terrorismo indumentário
das modas enlouquecidas, ou por fim o terrorismo pornográfico da
agressão sexual), o homem planejando chegar a Marte, o câncer que
ninguém vence e Paulo VI recebendo moças de short, tudo isto é
"notícia". — E o que faz esta sarabanda informativa? Interessa? Atrai?
Orienta?
-- A
meu ver, o mais das vezes causa acabrunhamento, superexcitação, e por
fim tédio. Sim, o tédio dentro da superexcitação; eis o estado de
espírito que a pletora informativa cria em muitos e muitos de nossos
contemporâneos.
Em
suma, todos sabem de tudo, não entendem nada, alguns ficam com os nervos
a tinir, e quase todos, à falta de melhor, bocejam.
* * *
-- E
como poderia ser de outra maneira?
Tudo
parece estar continuamente correndo para um abismo... que nunca chega ou
pode chegar de um momento para outro.
-- A
"ostpolitik" chegará a seu termo, abrindo as portas da Europa para a
invasão ideológica e política da Rússia? — Parece que sim, mas a coisa
está engasgada. Pergunte ao leitor médio por que. Ele já perdeu o pé e
não sabe mais.
-- A
"vietnamização" da guerra do sudeste asiático chegará ao seu termo? —
Parece, mas tão devagar que ninguém sabe quando. — Ela importará na
vitória do comunismo? — Parece, mas certo não é. Pergunte ao leitor o
que pensa. Ele já não sabe.
-- A
luta árabe-israelense, a quantas anda? — Poucos leitores o saberão dizer
claramente. — No que dará? Num impasse de década ou num acordo súbito e
precário? Ou, talvez na deflagração da III Guerra Mundial, antes mesmo
de eu acabar de escrever este artigo? — Ninguém sabe.
--
Quem poderá prognosticar o que teremos no Vaticano depois da recepção
das moças de short? E quem poderá dizer qual a nova concessão de
Nixon na sua triste trajetória para o ocaso dos EUA? — Ninguém ousa
prever.
-- Na
América do Sul, aqui bem perto de nós, o que farão o Chile e a Bolívia
comunistas, junto com o Peru... "peruanizado"? Atacará os países livres?
Fa-lo-ão com armas? Com propaganda? O que fará então a parte ainda livre
do Continente? E como agirão as superpotências em face disto? Lanusse
para onde vai? Ou para onde arrasta o hemisfério? — Tudo pode acontecer.
Ou nada acontecerá. Ninguém se entende.
* * *
Mas,
dir-me-á alguém, aí o mal não está tanto no excesso de notícias como no
excesso de desordem. — Concordo. Os dois fatores se somam.
Mas
pergunto: até que ponto a desordem dos fatos, já de si tão imensa e tão
trágica, é ainda agravada pelo sensacionalismo trepidante dessa
superprodução informativa?
E,
principalmente, a quem aproveita essa superexcitação?
No
mundo comunista ela entra em conta-gotas, filtrada por uma censura
implacável. Enquanto no nosso circula em torrentes.
-- E
que efeito produz aqui? O que é próprio do aturdimento senão desanimar e
tirar a vontade de lutar?
O
declínio da vontade de lutar já é a metade da derrota...
É
para este fenômeno, que peço a atenção dos homens capazes de lhe
encontrar remédio.