26 de
julho de 1970
Rumo
firme, na nau da indecisão
Estudei em meu último artigo a
psicologia do pedecista
[adepto do PDC, Partido Democrata Cristão]. Entretanto, não
cheguei ao termo do assunto, que — no gênero — é dos mais vastos.
Dos
mais vastos, sim, por ser dos mais complexos. E dos mais complexos
porque os traços essenciais da psicologia do pedecista resultam de uma
fundamental e crônica indecisão, tanto de temperamento como de feitio
intelectual. Ora, nada há de mais complexo do que a indecisão...
Assim, prossigo hoje no assunto.
* * *
Antes
de mais nada, deixo claro que não tenho em vista, aqui, nenhum pedecista
em concreto. Esta análise perderia todo o seu interesse se restringisse
seu campo a um mero indivíduo. Descrevo os pedecistas "in genere", isto
é, apresento uns tantos traços psicológicos que todos têm em comum, e
que deles fazem uma corrente espiritual, uma família de almas, antes
mesmo de serem — como são — uma corrente política. Por isto mesmo, o que
aqui escrevo sobre os pedecistas se refere imediatamente aos do Brasil,
mas seria analogamente aplicável aos da Íbero-América ou da Europa.
Excetuo do quadro, e ainda assim em alguma medida, os democristãos da
Alemanha. Creio supérfluo acrescentar que, ao fazer a descrição da
psicologia da generalidade dos pedecistas, não me esqueço que alguns
deles haverá que se encaixam mal no quadro. Como é bem sabido, nas
coletividades numerosas há sempre pessoas que exorbitam da regra geral.
* * *
O que
faz do pedecista um indeciso, é uma fundamental carência de energia para
optar.
Todos
nós carregamos na alma, desde o início, o duro ônus de uma cisão. Sim,
desta grande cisão fundamental que caracteriza nossos tempos de
transição, de crise, de tragédia. Vivem em nós os vestígios de dois mil
anos de tradição cristã, em luta com 500 anos de crise religiosa, moral,
cultural, política, social e econômica. Desde Lutero até nossos dias —
passando pela Revolução Francesa — essa crise se vem tornando sempre
mais acentuada. E a manifestação mais aguda dela está na antítese
catolicismo-comunismo.
Sentindo dentro de si o drama dessa cisão, os espíritos coerentes
compreendem a necessidade de resolver a tensão interior em que vivem,
por meio de uma solução lógica. Se a verdade está com o comunismo, é
preciso adotá-lo e levá-lo até suas últimas conseqüências lógicas. Se a
verdade está com a Religião Católica, é preciso abraçá-la e levá-la às
suas últimas conseqüências lógicas.
Diante da necessidade dessa opção fundamental e completa, que exige — é
óbvio — todo um longo esforço ordenativo interior, há um gênero de
almas
que se arrepia e recua. Esse recuo contém uma recusa. É a recusa
de ir
ao fundo das coisas, de reconhecer a grande crise ideológica de nossos
dias, e de tomar posição na arena a favor de um dos dois estandartes
opostos.
As
razões desse arrepio, desse recuo, dessa recusa? — São incontáveis. Em
alguns, é uma elementar inapetência de certezas: preferem, por instinto,
o vago, o indefinido, o mais-ou-menos. Em outros, é a preguiça de lutar:
ter certezas arrasta à pugna; logo, é mais cômodo viver na incerteza.
Outros, enfim, de alma leviana e caprichosa, sentem simultânea apetência
de Jesus Cristo e de Marx. E nem querem renunciar a Jesus Cristo quando
aplaudem Marx, nem renunciar a Marx quando dobram os joelhos diante de
Jesus Cristo.
Estes
múltiplos fatores, embora se distingam em tese, na prática não se
excluem, e até freqüentemente se somam. Deles resulta, de um lado, uma
antipatia profunda — eu talvez melhor dissesse, um remorso agressivo —
em relação aos espíritos ordenados, dinâmicos e coerentes. E do outro
lado, uma rejeição de toda solução inteiramente lógica para os problemas
atuais.
O
essencial, para essa família de almas — a lógica não consiste em
encontrar um caminho reto e coerente, rumo a uma verdade a proclamar, um
bem a defender, um erro a refutar ou um mal a punir.
O
essencial para ela é encontrar pretextos que a "justifiquem". Move-a o
desejo de conservar o "status quo" entre os termos contraditórios, de
evitar a luta, o entrechoque, o drama. O essencial é a paz.
Essa
paz, ela não a concebe como a tranqüilidade baseada na ordem, e a ordem
baseada na coerência. Entende-a como a estagnação resultante do
cambalacho entre teses inconciliáveis, da adoção dos programas ditos
"intermediários", cujo supremo escopo é contentar todo o mundo.
Disparate tão grande como o dos passageiros de um navio em tormenta, os
quais, estando em desacordo quanto ao roteiro para chegar ao porto
aceitassem um rumo intermediário, a respeito do qual uns e outros sabem
que certamente não conduzirá a lugar nenhum. E isto por horror a tirar
as coisas a limpo, a ser lógico, a discutir, a optar...
Como
veriam os passageiros dessa nau — chamemo-la nau do meio termo — aos
defensores de uma rota objetiva e lógica? — É claro que os qualificariam
de cerebrinos, insensatos, fanáticos e intransigentes. De perturbadores
da harmonia geral na vida de bordo. De desmancha-prazeres. — Como seria
cômodo, sem eles, o convívio quotidiano, na nau do meio termo!
É
exatamente o que pensa o demo-cristão genuíno, do membro da TFP: como
seria cômoda a vida sem esses desmancha-prazeres...
Segundo a mentalidade desses idólatras do cambalacho, a solução para a
cisão interior do homem contemporâneo, e para as lutas dela oriundas,
seria muito fácil. Pois consistiria só em fazer-se um acordo com os
comunistas. Não com os comunistas intransigentes, é claro. Mas com os
acomodatícios. Tratar-se-ia de aceitar certas concessões ao comunismo.
Mas desde que não chegassem ao comunismo total. Fazer desde logo, por
exemplo, uma reforma agrária bem socialista e bem confiscatória.
Aquietar assim os comunistas, adormecê-los, e salvar a propriedade
urbana e a empresarial. Isto renderia algum tempo de sossego. Quando os
comunistas acordassem do letargo e fizessem novas exigências,
ceder-se-ia mais algum tanto: a metade, mais ou menos, do que pedissem.
Sobreviria novo letargo.
E
assim por diante. Pouco importa, a tal gente, se a reforma agrária
socialista e confiscatória é justa ou injusta. Se ela favorece ou impede
a prosperidade. Estes são problemas que interessam só aos “lógicos”.
Para os amigos do letargo, só há um valor verdadeiramente supremo:
conservar o letargo.
* * *
É bem
esta a mentalidade pedecista (e portanto progressista)? — É bem isto.
Porém, não só isto. Quer o leitor uma prova? — Dou-a nesta pergunta: em
relação à TFP, a posição do pedecista é idêntica à que ele toma face ao
comunismo? Prega o pedecista a conciliação, a brandura, o meio termo em
relação a nós? Ou, pelo contrário, se enfurece conosco, move-nos a todo
momento uma guerrilha de sarcasmos, de suspeitas, de "tracasseries" [incômodos
de toda sorte causados por motivos fúteis]?
Aprofundemos este ponto pois ele nos conduzirá a uma conclusão curiosa
sobre o verdadeiro conteúdo da indecisão pedecista: é que esta inclui
uma profunda decisão — por vezes subconsciente — de caminhar para a
esquerda.
Em
outros termos, veremos que a indecisão inicial do pedecista o conduz a
uma decisão: a de rumar para a esquerda, sem o confessar aos outros... e
muitas vezes nem para si mesmo!
Veremos, no próximo artigo, como isto se passa.
Nota: Os negritos são deste site.