22 de
fevereiro de 1970
1770-1970: uma visão de conjunto
Parece-me muito proveitoso e até indispensável - para a compreensão dos
mais recentes lances políticos do comunismo internacional - lançar um
olhar retrospectivo para a história dos últimos 200 anos. O alcance
deste estudo paga largamente a pena.
Com
efeito, o comunismo parece, hoje em dia, onipotente e, ao mesmo tempo,
podre. Onipotente, pois: a) cobre uma tão grande faixa de terras e de
povos, que constitui um dos maiores "impérios ideológicos" da história;
b) jamais teve diante de si adversários tão ingênuos, tão tímidos, tão
entreguistas. Mas, a par disto, parece podre porque: a) jamais seus
supremos dirigentes pareceram tão indiferentes ao que constitui a
própria essência ideológica do comunismo; b) jamais a oposição nas
fileiras dos vários PCs se apresentou tão afoita, tão douta e tão
popular; c) e jamais o movimento autonomista nos países satélites
pareceu tão incontenível.
Se a
grande meta de nossos dias é derrotar o comunismo, a escolha do melhor
modo para alcançar este fim é de interesse supremo. Ora, tal escolha
deve ser feita levando em conta o que se passa nas fileiras do
adversário. De onde emerge, por sua vez, como sumamente importante, a
seguinte pergunta: esse duplo fenômeno de vitória e putrefação é
autêntico? Ou disfarça uma nova manobra deste?
Se um
retrospecto histórico de 1770 a nossos dias elucida a questão, é
inegável sua utilidade.
* * *
Em
seus aspectos essenciais, a história desse período se identifica com a
da preparação, surto, expansão e apogeu da imensa convulsão de idéias,
estilos de vida, sistemas artísticos, instituições políticas, sociais e
econômicas que se convencionou chamar Revolução Francesa. Com efeito, em
1770 (fixamos este ano um tanto arbitrariamente, para não recuarmos o
retrospecto além dos 200 anos), a Revolução estava no último período de
sua profunda e lenta gestação. Em 1789, veio à luz, e a derrocada do "Ancien
Régime" começou. Em poucos anos, a Igreja foi sucessivamente reduzida a
uma instituição apenas tolerada e, por fim, posta fora da lei. O trono
dos Bourbons foi atirado ao chão. A aristocracia foi abolida. O furor
revolucionário voltou em seguida sua sanha contra os ricos, e em sua
fase de maior paroxismo a Revolução apresentou matizes
incontestavelmente comunistas. Foi o Terror. Resume-se nisso que se
poderia chamar a fase explosiva, radical e trágica da Revolução. São
cinco anos.
Depois sucede-lhe a imensa fase processiva, lenta, sorrateira e
acomodatícia da Revolução. Vai ela de 1794 até nossos dias, (desde que
se admita que, sob certo ponto de vista, a Revolução continua em curso,
moldando cada vez mais o mundo a seu espírito anárquico e igualitário).
Esta fase se subdivide em dois períodos: a) o do recuo estratégico; b) o
do contra-ataque.
Tendo
dado largas a toda a sua sanha destruidora e elevada ao auge a reação
dos adversários, a Revolução foi retrocedendo por etapas.
No
início da fase do recuo estratégico (começo do Diretório até a queda de
Carlos X, em 1830) deu-se o estancamento da ofensiva comunista e a
consolidação da dominação da burguesia.
Com
Napoleão, o retrocesso se tornou ainda mais marcante. A república foi
substituída por uma monarquia espúria. A sociedade burguesa se
metamorfoseou em uma aristocracia postiça de novos ricos, de generais
vitoriosos e de administradores de alto escalão. A Igreja, embora sem
recuperar sua antiga situação, foi tirada dos ferros e entrou em regime
de concordata com o Estado. Napoleão procurou até coonestar sua situação
aos olhos dos seus adversários, nostálgicos do "Ancien Régime",
casando-se com uma arquiduquesa da Áustria. Ele se tornou assim - por
afinidade - sobrinho neto de Maria Antonieta e de Luís XVI. Incorporou
ele, em sua corte, quantos cortesões dos Bourbons conseguiu aliciar. E
tentou até comprar os direitos ao trono, do conde de Provence, irmão e
sucessor de Luís XVI.
Toda
essa aparente volta ao passado era, entretanto, muito mais de superfície
do que de profundidade. Ao longo do Diretório, como do Consulado e do
Império, o fato profundo e capital é que a sociedade nova, laica,
igualitária e plebéia, foi tomando consistência e estabilidade. Os
recuos para o "Ancien Régime" tinham um fim estratégico: eles consolavam
e adormeciam os adversários da Revolução, porém nada lhes restituíam de
sólido e durável. O que a Revolução concedia na aparência, era
compensado por lucros em profundidade.
Como
se operava essa neutralização dos adversários da Revolução?
Os
clérigos e os nobres e em geral os nostálgicos do passado cientes de que
o terrorismo deixara germes ativos de inquietação, apavorados ante a
perspectiva de uma revivescência revolucionária, de bom grado aceitavam
o pouco que a nova ordem de coisas lhes restituía. E, detestando-a, de
medo que viesse coisa pior, cediam para não perder. Cediam esperanças
muito amadas para não perder o pouco que haviam recobrado.
As
coisas continuaram no mesmo rumo quando, destituído Napoleão pelos
aliados, subiu ao trono Luís XVIII, o antigo conde de Provence. O clero
e os emigrados ganharam mais algumas honrarias. E foi só. Em seus traços
profundos, a ordem de coisas implantada por Napoleão perdurou, já agora
com o apoio da maioria de seus adversários da véspera, uma vez que a
aceitara o rei.
Sob
os Bourbons (1815-1830) as sociedades secretas desenvolveram uma
propaganda revolucionária ativa. Em sua maioria, os adversários da
Revolução, sempre firmes no "ceder para não perder", e gozando
pachorrentamente sua tão incompleta vitória, só pensavam em aproveitar a
vida. A Revolução preparava assim, ativa e afoitamente, um "estouro".
Este
estouro que encerra a fase dos recuos estratégicos e inaugura a fase do
avanço processivo e lento da Revolução não consistiu na implantação
direta da república, porém na "republicanização" da monarquia. A
Revolução depôs os Bourbons do ramo primogênito e conduziu ao trono o
príncipe usurpador que tomou o nome de Luís Filipe. Com ele a burguesia
subiu ao poder, e a nobreza saiu da primeira plana da vida política.
Aliviados ao ver que as coisas não chegavam até o pior, isto é, até a
república e o Terror, a maioria dos partidários do ramo deposto
continuou - já agora no ostracismo político e na penumbra - a vegetar
tranqüila. Mais uma vez, parecia-lhe prudente aceitar o pouco que se
lhes deixava, a reagir, exasperar o adversário e... acabar perdendo
tudo.
Entrementes a efervescência revolucionária continuava, sempre mais
exigente. Assim, em 1848, a Revolução derrubou Luís Felipe, e durante um
curto intervalo republicano (1848-1851) elegeu para presidência da
república um príncipe plebeu e ainda mais marcadamente usurpador, isto
é, Luís Napoleão Bonaparte. Este não tardou a se proclamar imperador, e
sob o nome de Napoleão III governou até 1870. Seu regime foi ainda mais
"republicano", burguês e laico do que o de Luís Filipe. Com a queda de
Napoleão III resultante da vitória da Prússia, houve dois surtos
extremistas, isto é, uma vitória eleitoral do Conde de Chambord,
herdeiro da monarquia legítima, e uma explosão comunista. Mas nem o
Conde de Chambord, nem os comunistas conquistaram o poder. Quem ficou
com ele foi a burguesia.
Nestes 100 anos ininterruptos de república, o que sucedeu na França?
O
processo rumo à anarquia e à igualdade continuou seu curso, mas já agora
em outro nível. Dos adversários visados na fase explosiva e violenta que
culminou no Terror, dois estavam por terra: a dinastia e a nobreza. Um
continuava de pé, a burguesia. Cumpria derrubá-la.
Sob
este ponto de vista, a História da França, nos 100 anos últimos, se
resume numa decadência lenta e contínua do poder burguês, numa erosão
incessante da propriedade individual e numa penetração gradual do
espírito socialista até nas fileiras do Clero e da burguesia. Seria por
demais longo descrever aqui as vicissitudes desse processo, aliás mais
recente e mais conhecido. Basta dizer que, ao longo dele, a conduta da
burguesia foi cópia exata da que tivera anteriormente a nobreza: um
perpétuo "ceder para não perder", uma fruição da letargia do momento
presente, sem maiores preocupações com o futuro.
Em
suma, ao cabo de 100 anos de agitações republicanas e contra-agitações
monarquico-aristocráticas e de mais de 100 anos de república burguesa,
tudo caminha na França para a plena realização do programa dos
terroristas, dos "montagnards", dos "cordelliers", e do comunista Babeuf.
Paulatinamente, e sem efusão de sangue, o terrorismo é o grande
vencedor. Basta que as coisas continuem a correr tranqüilamente como
correm que, mais tempo, menos tempo, a França será comunista... O
comunismo, implicitamente, tem a vitória nas mãos. Pois ele está no
socialismo como o pinto no ovo. E o socialismo já venceu.
* * *
É
possível deduzir desta massa de fatos um ensinamento para o presente?
É o que em
outro artigo veremos.