Janeiro de 1979 - Almoço oferecido
pela "Folha de S. Paulo" aos colaboradores de sua secção "Tendências e
Debates". Vê-se o prof. Plinio Corrêa de Oliveira à esquerda do
diretor do jornal, Octávio Frias
26 de
fevereiro de 1969
O
problema dos 4 irmãos
A
Campanha da Fraternidade convoca todos os brasileiros para uma reflexão
sobre a máxima "Somos todos irmãos, somos todos iguais". Resolvi assim
dedicar a tal reflexão minhas palavras de hoje que, se outros méritos
não possuem, têm pelo menos o de serem difundidas num jornal de muito
larga circulação.
Desde
logo, entretanto, percebi a dificuldade do tema. Por todas as vibrações
de afetividade que lhe sobem do mais profundo do ser, pela clareza
privilegiada com que - mesmo quando inculto - intui as grandes verdades
simples e sublimes da vida, enfim pela marca que nele imprime sua
tradição cristã, o brasileiro está persuadido de que somos todos iguais
e irmãos. Assim, por exemplo, a miscigenação que tem por fundamento a
igualdade e a fraternidade de todas as raças, é uma constante profunda
de nossa História. O que dizer, pois, de novo a nosso público sobre o
assunto?
Sem
dúvida, terão pensado nisto os mentores da Campanha. E não terão
desejado para ela a repetição de chavões batidos, mas a evocação de
aspectos esquecidos ou a retificação de conceitos mal entendidos,
concernentes quer à igualdade quer à fraternidade. É este o único modo
de se dizer ao público algo que para ele seja novo a respeito desses
temas.
Vencida assim a perplexidade preliminar, pus-me à cata de algo "novo" a
dizer. E não tardou que a memória auditiva mo trouxesse à mente.
Igualdade. Fraternidade... qual é mesmo o outro vocábulo que falta? Ah,
é Liberdade. Assim se reconstituía em meu espírito a trilogia da
Revolução Francesa. E ao mesmo tempo um amálgama de imagens se
apresentava em tumulto à minha atenção: ensinamentos divinamente
luminosos do Evangelho, conceitos lapidares do Direito Romano, franquias
medievais, tiradas líricas de Rousseau, sarcasmos de Voltaire, a
sangueira e a famosa Madame Roland a bradar, rumo à guilhotina,
"liberdade, liberdade, quantos crimes são cometidos em teu nome".
* * *
Não,
nada de grande, nada de saudável, nada de durável se construiu em
matéria de cultura e civilização sem tomar em conta uma justa medida de
liberdade, de igualdade e de fraternidade.
Porém
os maiores crimes dos séculos recentes foram cometidos precisamente em
nome de uma liberdade sem freios, de uma igualdade absoluta e de uma
fraternidade sem discernimento. Para o demonstrar, não é necessário
subir à Revolução Francesa; basta considerar o filho furibundo que esta
deu à luz, o comunismo. Cobre ele hoje a terra de violência. Os
executores imediatos de sua ação violenta o mais das vezes nada entendem
das elucubrações filosóficas e econômicas tão esfumaçadas de Marx.
Move-os em geral um raciocínio primário que poderíamos resumir assim: a)
todos os homens são irmãos; b) o irmão deve desejar para seus irmãos
tudo quanto de bom ele tem para si; c) logo, a igualdade completa é a
conseqüência forçosa da fraternidade autêntica; d) toda desigualdade é
pois uma injustiça; e) de sorte que o irmão vítima de uma injustiça tem
o direito de pedir, e até de impor a igualdade em nome da fraternidade.
A última conseqüência da fraternidade é, como veremos, a pancadaria,
quando não o crime.
Para
os que se deixaram enredar neste sofisma, parece-me que algumas
reflexões sobre a verdadeira fraternidade podem trazer algo de novo.
Assim, creio, se patenteia um dos aspectos de mais palpitante atualidade
da Campanha da Fraternidade.
* * *
No
âmago da problemática acima enunciada, está uma questão que é fácil pôr
em termos concretos.
Imagine-se uma família com quatro gêmeos, todos homens, inteiramente
parecidos pelo aspecto físico, pelos gostos, pela mentalidade, pelo
nível de inteligência. Entre eles reina a mais inteira igualdade.
Imagine-se outra família com quatro filhos diferentes pelo sexo, pela
idade, pela capacidade pelo nível de inteligência, por todo o feitio
pessoal. Mas que sabem harmonizar e pôr em colaboração essas
diversidades, pela força de um mútuo e profundo afeto.
Pergunta-se: em qual das duas famílias existem condições de convivência
fraterna mais perfeitas? Em outros termos, a verdadeira fraternidade
resulta da igualdade completa? Ou antes de uma igualdade fundamental
temperada por toda uma escala de valores diversificados e
hierarquizados?
Assim
posto o problema, veio-me à memória uma frase de Maurois (na biografia
de Disraeli – “La Vie de Disraeli”, André Maurois, Librairie Grasset,
Paris, 1933, pag. 152, ndc) a respeito de um grupo de amigos: "Como
todos os verdadeiros amigos, eles se pareciam pouco uns aos outros". A
amizade tem muito de comum com o amor fraterno. Este, como aquela,
estagna e morre na monotonia irrespirável da igualdade total. Pelo
contrário, vive, palpita e frutifica em um clima de desigualdades
proporcionadas e harmônicas. E com isto rui por terra a identificação
comunista entre igualdade total e fraternidade perfeita. E a
"fraternidade", em lugar de desfechar em lutas de classes e sangueira,
dá em harmonia e cooperação construtiva.
Essa
conclusão, tão lógica, me parece por demais importante para ficar
desprotegida do apoio de algumas citações. Procuro-as nos documentos
pontifícios.
Ouçamos a grande voz de Leão XIII: "Mais de uma vez Nós o declaramos: o
remédio para esses males não será jamais a igualdade subversiva das
ordens sociais, mas esta fraternidade que, sem prejudicar em nada a
dignidade da posição social, une os corações de todos nos mesmos laços
do amor cristão" (Alocução de 24-1-1903 ao Patriciado e à Nobreza
Romana).
Em
seguida consultemos o pranteado Pio XII: "os irmãos não nascem nem
permanecem todos iguais: uns são fortes, outros débeis; uns
inteligentes, outros incapazes; talvez algum seja anormal, e também pode
acontecer que se torne indigno. É pois inevitável uma certa desigualdade
material, intelectual, moral numa mesma família (...). Pretender a
igualdade absoluta de todos seria o mesmo que pretender dar idênticas
funções a membros diversos do mesmo organismo" (Discurso de 4-6-1953 a
um grupo de fiéis).
E por
fim leiamos o tão citado João XXIII. Disse ele reportando-se a Pio XII:
"Num
povo digno de tal nome, todas as desigualdades que derivam não do
arbítrio, mas da própria natureza das coisas; desigualdades de cultura,
de haveres, de posição social - sem prejuízo, bem entendido, da justiça
e da caridade mútua - absolutamente não são obstáculo à existência e ao
predomínio de um autêntico espírito de comunidade e fraternidade'" (Radiomensagem
de Natal de 1944) (Encíclica "Ad Petri Cathedram", de 29-6-59).