Janeiro de 1979 - Almoço oferecido
pela "Folha de S. Paulo" aos colaboradores de sua secção "Tendências e
Debates". Vê-se o prof. Plinio Corrêa de Oliveira à esquerda do
diretor do jornal, Octávio Frias
15 de
janeiro de 1969
O
Grande Hotel Castro
Sonhei. Sonhei que meu secretário me entregava, trazida pelo correio,
uma carta de propaganda comercial cujo envelope levava o timbre, aliás
muito pouco imaginativo, de Grande Hotel Castro.
Tratava-se, como é bem de ver, de missiva enumerando, para o deleite de
eventuais turistas, os altos predicados do tal hotel. À medida que eu
percorria o texto, os lugares e as cenas descritas tomavam cor, forma e
vida diante de meus olhos encantados. Em uma ilha toda rodeada por um
mar alto e azul, se erguia, bem no cume de um morro, uma mansão
espaçosa, dotada daquela particular nota de estabilidade e gosto que faz
pressentir, já de fora, o conforto, o asseio e a opulência que por
dentro reinam. As encostas do morro desciam para a praia, recobertas de
bosques e jardins. Os salões, de uma correção perfeita - com móveis
macios e grandes que convidavam ao repouso - eram rasgados por janelões
dos quais se viam diretamente os veleiros tocados pelo vento: sensação
de alto mar aliada ao frescor e aos aromas da cordilheira. Uma criadagem
abundante, discreta, solícita, servia hóspedes simpáticos e educados. Na
sala de jantar, moderadamente cheia, flutuava o bom odor indefinido mas
aliciante, provindo da coexistência não só pacífica como positivamente
harmônica de toda a sorte de iguarias. Na portaria, um funcionário
graduado e solícito conduzia os hóspedes que quisessem, para um subsolo
com caixas fortes individuais reconfortantes, para a guarda de jóias e
dinheiro. Boutiques, uma livraria, salão de barbeiro, penteador, duchas,
até uma discreta pequena farmácia para os hóspedes a quem o excesso de
quitutes pudesse perturbar: nada faltava, tudo demonstrava gosto,
categoria, alto senso do que sejam férias.
Vinham logo depois, na circular, os preços das passagens, dos
apartamentos, das suites etc. Que preços, e que descontos!
No
fim, como de estilo, o dono do Grande Hotel Castro afirmava a persuasão
de que ter-me-ia, e aos meus amigos, ainda para estas férias. E
acrescentava toda a espécie de fórmulas-chapa para me persuadir de sua
estima, sua simpatia, sua admiração etc., etc.
* * *
Sonhar é fácil. Com o papel na mão, me pus a imaginar que meus amigos e
eu singrávamos para o hotel maravilhoso da ilha encantada. Em breve, o
azul do mar se adornava com mais de uma centena de veleiros vindos de
toda a parte onde existem sócios, amigos ou militantes das várias TFPs
da América Latina. Vindos de Manaus e de Belém do Pará através do
caudaloso Amazonas, saídos da Argentina pelo majestoso rio da Prata,
provenientes do Chile pelo épico estreito de Magalhães, baixados de São
Paulo pela Anchieta até o Oceano, saídos de Campos pelo Paraíba, vindos
das Minas Gerais pelo litoral encantado do Espírito Santo, oriundos de
Curitiba e de Florianópolis e Blumenau, da linda Bahia, dos rijos e
poéticos arrecifes pernambucanos, de Niterói e da Guanabara
incomparável, do Montevidéu risonho, da prestigiosa Porto Alegre e da
próspera Caracas, de Medellin e de Bogotá, de Lima e de São Luís do
Maranhão, do mar límpido e bravio de Fortaleza, da Brasília extravagante
e da Goiânia movimentada, de dezenas de outros lugares enfim, lá
vínhamos todos em nossos barcos, com imensas velas rubras marcadas pelo
áureo leão rompante. Eu sorria comprazido e entusiasmado. Apenas, uma
pontinha de mal-estar me incomodava, proveniente da conjunção de algumas
impressões cujo nexo fugidio me escapava: não sei como eu sabia que os
de Caracas eram os que de mais perto vinham... uma ilha... Castro...
algo não estava certo!
Ainda
com o papel na mão, desviei os olhos da rutilante armada da TFP para
acabar de ler a circular. Com efeito, abaixo da assinatura do
diretor-proprietário, um tal sr. F. Castro, vinha o seguinte:
"P.S.
- Os serviços de vigilância do Grande Hotel Castro são exímios. O fato
noticiado pela imprensa, na semana passada, de que alguns srs. hóspedes
conseguiram fugir apesar da ação de nossos cães de caça e de nossos
guardas-atiradores, foi absolutamente excepcional".
Sobressaltado pela inopinada comunicação, acordei. Em minha mão estava
realmente uma folha de papel: uma página de jornal com anúncios de
turismo e a notícia de que a polícia de Fidel Castro perseguira com cães
de caça e disparos de armas de fogo um grupo de quase 200 infelizes -
entre eles mulheres e crianças - que fugiam do "paraíso" comunista para
penetrar na base norte-americana de Guantanamo, meu permanente enlevo
com o imenso florescer das TFPs, tudo se misturara em meu espírito e
dera no sonho que acabo de narrar.
Lembro-me de que, quando eu "li" o post-scriptum, raciocinei: toda esta
propaganda não é senão balela, pois como pode o Grande Hotel Castro ser
tão delicioso e ter ao mesmo tempo hóspedes que dele queiram fugir com
risco de vida? Cárcere Castro, campo de concentração Castro, inferno
Castro, isto sim... E para lá não vou.
* * *
Acordado, tudo se desfez para mim. Mas o raciocínio ficou. Como
acreditar nos benefícios paradisíacos de um regime que se arma como um
campo de concentração, para obrigar a permanecer sob suas garras uma
população espavorida?
Raciocínio gerado no sonho, mas simples, límpido, irrecusável como tudo
quanto se baseia no bom senso elementar. Desta seção o envio para uso do
Pe. Comblin em Recife, e dos admiradores de batina, de mini-saia, de
beca ou de custosas camisas-esporte que ele tem pelo Brasil. Em suma,
envio-o para esse punhado de homens de sacristia, de universidades e de
boate que brandem a bandeira da revolução social abusando o nome das
multidões rurais e urbanas. Sim. De nossas boas multidões pacíficas,
honestas e operosas... as quais teimam em não se deixar "conscientizar"
pelos tais "comblinistas".
P.S.
- Não é só o F. Castro de meu sonho que tem um P.S. a fazer. Também eu.
Bem sei que nada é mais anacrônico que um "comblinista" de batina.
Ninguém antipatiza mais com a batina - tão santa, venerável e simpática
- do que o comblinista-tipo. Bem sei. Como milhões de brasileiros, estou
até farto de saber.