23 de
novembro de 1969
Dias
decisivos nas duas Alemanhas
Meu
tema de hoje é o problema das relações entre as duas Alemanhas, a
Ocidental e a Oriental. Questão que, por certo, não diz imediatamente
respeito ao Brasil, mas envolve — por seu alcance mundial — o destino de
todos os países, inclusive o nosso. Latino, pelo favor de Deus, o Brasil
é propenso especialmente a fixar sua atenção no que se passa na grande
família dos povos latinos. Somos, assim, levados a perder de vista, não
raras vezes, o que se passa no mundo paradoxal e profundo dos povos
germânicos: mundo disciplinado e inquieto, atormentado e plácido,
sonhador e operoso, meigo e guerreiro, sagaz e ingênuo, místico e
sarcástico, cuja influência nas mais altas esferas da cultura universal
é incontestável. Lamento essa omissão de tantos de meus patrícios.
Sirva-lhes o artigo de hoje de despretensioso convite para analisar a
encruzilhada decisiva em que ora se encontra aquele povo, transbordante
de vitalidade, cultura e riqueza. Verão, os meus leitores, que hoje,
muito mais que nos dias sinistros de Hitler, é a Alemanha que está — de
certo modo — a ponto de decidir os destinos do mundo.
* * *
Simplifiquemos, quanto possível, a exposição dos problemas. Vamos, antes
de tudo, aos de índole política.
O
mundo germânico se compõe de, pelo menos, quatro grandes fragmentos: a)
Alemanha Ocidental, com capital em Bonn; b) Alemanha Oriental, com
capital em Pankow; c) Áustria; d) Suíça alemã. Como esta última,
engajada na confederação Helvética, tem uma trajetória histórica
peculiar, pensemos só nos outros três fragmentos.
Durante um milênio, os povos germânicos constituíram um todo político, o
Sacro Império Romano Alemão. Conjunto de alta expressão simbólica, mas
bastante elástico do ponto de vista político. No decurso do século XIX,
a crescente hegemonia prussiana absorveu num todo mais rígido a Alemanha
inteira, com exclusão da Áustria. Hitler anexou a Áustria e formou assim
a Grande Alemanha. Na base deste crescente processo de centralização,
está um princípio verdadeiro, e profundamente sentido pelo povo alemão:
todo povo uno pela raça, pela língua, pela História e pela cultura,
tende a unir-se, também no plano político. Bem entendido, essa legítima
tendência à unidade foi levada ao excesso por Bismarck e pelos que lhe
continuaram a obra, até Hitler. Sem embargo, a tendência à unidade é uma
das tônicas do pensamento alemão de hoje, exatamente como de ontem.
Ora,
desde 1949, a Alemanha está dividida em duas (a de Bonn e a de Pankow).
É natural que ela aspire a unir-se.
Daí
nascem problemas internacionais. Não se tornará por demais forte uma
Alemanha assim unida? Os soviéticos dizem que sim. Os americanos, os
franceses e ingleses dizem que talvez. O que opinarão sobre isto os
austríacos? Viena aceita um papel nesta reconstituição? Estes complexos
e substanciosos problemas políticos interessam o Brasil e o mundo na
medida em que afetam princípios de justiça e valores de cultura
universais. Eles também interessam ao orbe na proporção em que podem
afetar a rivalidade soviético-americana, rumo à paz ou à guerra
universais.
A
ninguém pode passar despercebida a magnitude do problema. E assim se
explica que, com o correr do tempo, vai ele pondo em crescente
efervescência as chancelarias dos diversos países.
Sob a
dupla pressão do terror da guerra e da esperança da paz, vai sendo
estudado outro ciclo de problemas morais, culturais sócio-econômicos,
igualmente postos em tela pelas perspectivas de reunificação teutônica.
Com
efeito, sendo uma Alemanha neocapitalista e outra comunista, como
fundi-las em um só todo? Mediante uma federação em que cada parte
conserve seu regime social e econômico atual? É isto praticável? O
resultado interno da justaposição de duas ordens de coisas tão
heterogêneas não será o caos? Cada "metade" alemã não tenderá — no plano
externo — para o polo correlativo, isto é, os EUA capitalista e a Rússia
comunista? E não dará isto em novo desconjuntamento das duas Alemanhas?
Por fim e principalmente (digo principalmente pensando nas almas de
escol para as quais os aspectos morais preponderam sobre todos os
outros), há o problema moral: dado que o comunismo é a
institucionalização da amoralidade e da imoralidade em todos os campos
da atividade humana, será lícito à Alemanha Ocidental ligar-se à
Oriental aceitando como fato consumado a bolchevização desta? Não seria,
antes, o caso de a Alemanha Ocidental libertar a Oriental, para só
depois unir-se a ela?
Tal
pergunta faz pulular outros problemas. Essa "cruzada", que evidentemente
tem as simpatias de todo o verdadeiro anticomunista, não trará a guerra
mundial?
Categórico na afirmação de que é imoral a aceitação do regime comunista
de Pankow, parece-me que seria possível derrubar esse regime por um
golpe publicitário incruento. Basta que o clamor universal exija, na
Alemanha Oriental, eleições livres, precedidas de livre propaganda, tudo
sob as vistas de uma comissão internacional. Estou certo de que a Rússia
não ousaria recusar a proposta. E que o regime de Pankow ruiria como um
castelo de cartas.
Não
reconheço, é claro, a nenhum plebiscito o direito de optar entre a
moralidade de um lado, a amoralidade ou a imoralidade do outro. Ma, já
que os soviéticos afirmam estar no povo a fonte última do poder, é
estratégico arrancar-lhes [a máscara da] face, mostrando ao mundo que
dessa fonte não brotam águas boas para eles.
* * *
Por
mais simples e direta que seja esta solução, há quem pensa em outra. E
esta — aparentemente cordata — é terrível. Consistiria na implantação de
um regime federativo entre as duas Alemanhas, gradualmente
homogeneizadas: a Alemanha Ocidental se bolchevizaria um tanto e a
Oriental se "capitalizaria" outro tanto.
Bem
se vê, se isto der certo em escala alemã, poderia ser aplicado em escala
européia: uma federação continental, incluindo a Rússia, e, por sua vez,
a "homogeneizada". Seria segundo os simplórios... ou os velhacos, o meio
de evitar a guerra.
* * *
O
fruto da moralidade é a paz: "opus justitiae pax". A este aforismo,
endossado pela sabedoria da Igreja, corresponde o princípio oposto: os
frutos da imoralidade são as desordens, os tumultos, e as guerras.
Será
pela generalização da imoralidade comunista, que a Europa chegará à paz?
Mas,
dirá alguém, trata-se apenas de uma semi-imoralidade. - Não nego. Mas
pergunto o que é uma semi-imoralidade, senão imoralidade? O que é uma
água semi-suja, senão água suja?
Água
suja sim, e a serviço da velhacaria. Pois com a semicomunistização da
Alemanha e da Europa à comunistização completa?
Batamos palmas à unificação alemã. Não, porém, por este processo
espúrio...