Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Artigos na

 "Folha de S. Paulo"

Janeiro de 1979 - Almoço oferecido pela "Folha de S. Paulo" aos colaboradores de sua secção "Tendências e Debates". Vê-se o prof. Plinio Corrêa de Oliveira à esquerda do diretor do jornal, Octávio Frias

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11 de dezembro de 1968 

A igualdade total no ponto de partida, essa injustiça 

Segundo a todos os momentos ouço repetir, a justiça manda que, no ponto de partida da vida, todos tenham as mesmas oportunidades. Assim, a educação deveria ser igual para todos, e iguais os currículos nas diversas profissões. Quem tivesse mais valor sobressairia fatalmente. O mérito encontraria seu estímulo e sua recompensa. E a justiça – enfim! – imperaria sobre a face da terra.

Este modo de ver assume, por vezes, uma formulação com matizes "cristãos" (e qual o desatino que não procura hoje um disfarce "cristão"?). Deus – argumenta-se – premiará no fim da vida os homens segundo seus méritos, sem tomar em consideração o berço em que cada qual nasceu. Na perspectiva da justiça divina, e para efeitos de eternidade, haveria, pois, uma negação do valor dos pontos de partida. É louvável, é digno, é cristão, neste caso, que os homens procurem organizar a existência terrena segundo as normas da celestial justiça. E que, portanto, as vantagens da vida terrena fiquem igualmente ao alcance de todos, e acabem por ser conquistadas pelos mais capazes.

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Antes de analisar este princípio em si mesmo, é bom que anotemos algumas das aplicações que dele se ouvem aqui e acolá.

Há homens de negócio que consideram a hereditariedade da empresa um privilégio antipático. Seus filhos não serão os donos da empresa por direito de herança. Serão funcionários como os outros, que partindo da estaca zero, isto é, dos cargos mais modestos, só ascenderão à direção da empresa se forem os mais capazes.

Há famílias de posses, e de boa educação, que consideram um imperativo de justiça o estabelecimento de um só padrão de escola primária e secundária. Fechados ou reformados portanto todos os estabelecimentos de ensino de níveis diversos, que hoje existem.

Não são tão raros os que, tendo ao longo da existência acumulado boas economias, sentem na consciência um certo mal-estar diante da idéia de os transmitir aos filhos: não se beneficiarão estes, ipso facto, de um privilégio antipático e injusto, adquirindo bens que não lhes vieram nem do trabalho próprio, nem do mérito pessoal?

Assim, a doutrina da igualdade compulsória dos pontos de partida se desdobra em conseqüências que podem deitar por terra o regime da propriedade privada.

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Antes de passar adiante, importa notar as pitorescas contradições em que caem habitualmente os defensores destas teses. Endeusadores do mérito como único critério de justiça, favorecem em geral as escolas de pedagogia moderna, infensas a prêmios e castigos, sob a alegação de que tanto as punições quanto as recompensas criam complexos. E, por esta forma, a idéia do mérito – e seu forçoso corolário, que é a idéia da culpa – são eliminados da educação dos futuros cidadãos de uma civilização baseada só no mérito.

De outro lado, os mesmos endeusadores do mérito se mostram, o mais das vezes, favoráveis a cemitérios onde todas as sepulturas seja iguais. Assim, no ponto terminal de uma existência terrena organizada segundo o critério único do mérito individual, e no limiar de uma vida eterna feliz ou infeliz segundo o mérito e a culpa, qualquer reconhecimento especial do mérito fica excluído. Campas iguais para o sábio insigne e o homem comum, para quem regeu povos e para quem só cuidou da própria vida, para a vítima inocente e o infame assassino, para Calabar ou para André Vidal de Negreiros, para o implantador de cismas e de heresias e para o herói que viveu e morreu defendendo a Fé.

Como explicar que se possa, ao mesmo tempo, endeusar tanto o mérito, e negá-lo tão completamente?

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Entretanto, a mais espantosa contradição destes adeptos da igualdade de todos os pontos de partida, se mostra quando, ao mesmo tempo, se afirmam entusiastas da instituição da família. Esta, com efeito, é por mil lados a negação rotunda da igualdade dos pontos de partida. Vejamos porque.

Há um fato natural, misterioso e sagrado, que está intimamente ligado à família. É a hereditariedade biológica. É evidente que umas famílias são mais bem dotadas, sob este ponto de vista, do que outras, e que isto depende muitas vezes de fatores alheios ao trato médico ou à educação altamente higiênica. A hereditariedade biológica traz importantes reflexos na ordem psicológica. Há famílias em que se transmite através de muitas gerações ou o senso artístico, ou o dom da palavra, ou o tino médico, e aptidão para os negócios, e assim por diante. A própria natureza – e, pois, Deus, que é Autor da natureza – quebra, através da família, o princípio da igualdade do ponto de partida.

Acresce que a família não é mera transmissora de dotes biológicos e psicológicos. Ela é uma instituição educativa, e, na ordem natural das coisas, a primeira das instituições pedagógicas e formativas. Assim, quem for educado por pais altamente dotados do ponto de vista do talento, da cultura, das maneiras ou – o que é capital – da moralidade, terá sempre um ponto de partida melhor. E o único meio de evitar isto é suprimir a família, educando todas as crianças em escolas igualitárias e estatais, segundo o regime comunista. Há assim uma desigualdade hereditária mais importante do que a do patrimônio, e que resulta direta e necessariamente da própria existência da família.

E a herança do patrimônio? Se um pai tem verdadeiramente entranhas de pai, ele amará por força, mais do que aos outros, o seu filho, carne de sua carne e sangue de seu sangue. Assim, ele andará segundo a lei cristã se não poupar esforços, sacrifícios nem vigílias, para acumular um patrimônio que ponha seu filho a coberto de tantas desgraças que a vida pode trazer. Neste afã, o pai terá produzido muito mais do que produziria se não tivesse filhos. Ao fim de uma vida de trabalho, este homem expira, alegre por deixar o filho em condições propícias. Imaginemos que, no momento em que ele acaba de expirar, vem o Estado e, em nome da lei, confisca a herança, para impor o princípio da igualdade dos pontos de partida. Esta imposição não é uma fraude em relação ao morto? Ela não calca aos pés um dos valores mais sagrados da família, um valor sem o qual a família não é família, a vida não é vida, isto é, o amor paterno? Sim, o amor paterno que dispensa proteção e assistência ao filho – para além mesmo da idéia de mérito – simplesmente, sublimemente, pelo simples fato de ser filho.

E este verdadeiro crime contra o amor paterno, que é a supressão da herança, poderá cometer-se em nome da Religião e da Justiça?


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