Plinio Corrêa de Oliveira

 

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4 de novembro de 1982

A "gallarda" de D. Juan d’Áustria

 

 

"Ver, julgar e agir": tal é, segundo São Tomás, a seqüência do reto proceder humano. Comecemos pois pelo "ver".

E vejamos os fatos precisamente como se deram. Extraio-os do "ABC", o grande, prestigioso... e moderado... diário madrilenho, de 30 de outubro p.p.

Na Câmara anterior, o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) dispunha de 121 cadeiras. Na Câmara agora eleita contará com 201. Ele ganhou, pois, 80 cadeiras.

Numericamente mais importante do que a bancada socialista era a da União do Centro Democrático (UCD), que dispunha de 168 cadeiras. Na Câmara nova ficará reduzida a 12 cadeiras. A perda espetacular do centrismo foi portanto de 156 cadeiras;

O Partido Comunista contava com 23 cadeiras na Câmara anterior. Agora não terá senão 5. A perda de 18 cadeiras é literalmente muito pesada, dada a já diminuta votação do partido;

O partido que mais progrediu foi a Aliança Popular (AP), de direita, que contava com apenas 9 deputados e passou para 106. O ganho foi de 97 cadeiras, isto é, mais de mil por cento.

Abstenho-me de analisar a votação de algumas pequenas correntes que não alteram o quadro.

* * *

Passemos ao "julgar":

A votação socialista proporciona ao PSOE a maioria na Câmara. Pois, no total de 350 cadeiras tocar-lhe-ão 201. Com isto cabe-lhe o direito a que seja escolhido em suas fileiras o novo gabinete. Quando este artigo sair, provavelmente o rei Juan Carlos – centrista quintessenciado, e por isso velado mas ativo simpatizante do socialismo – estará em gostosas tratativas com Felipe Gonzáles, o líder do bloco majoritário;

A oposição de direita, aureolada pela irradiação de dinamismo que lhe vem do fato de ser a agremiação que mais progrediu nas últimas eleições, poderá criar sérios embaraços à maioria governamental. Porém não vejo que, regulamentarmente, possa impedir o PSOE de fazer aprovar uma legislação amplamente socialista.

Em suma, a vantagem obtida pelo socialismo com o aumento do número de suas cadeiras é menor do que o prejuízo que lhe advém do desprestígio ocasionado pelo fato de que a direita cresceu (proporcionalmente às cadeiras da legislatura passada) mais do que ele.

* * *

E passemos por fim ao "agir".

Em nossas poltronas de espectadores brasileiros, agir é torcer. Coisa para nós importante, já que a torcida é uma das atitudes prediletas do espírito brasileiro. Mas também porque nossa torcida, quanto a assuntos externos, condiciona em boa medida nossas atitudes quanto a assuntos domésticos.

Isto posto, vamos à nossa torcida: o que vai acontecer mais provavelmente?

Como vimos, essencialmente o que de mais importante aconteceu foi a desagregação do centro. Este se fendeu em duas partes. Uma deslizou para a esquerda, e outra para a direita. Do centro, outrora onipotente, não restou senão um punhadinho de cinza funerária. O significado do fato não se esgota nos limites de uma mera redistribuição de cadeiras no Parlamento. Ela significa uma mudança no mais profundo da psicologia espanhola. Pende esta para Sancho Pança sempre que é centrista, para D. Quixote sempre que é esquerdista (a Passionária o que foi senão uma sinistra "Quixota" de esquerda?), ou para Lepanto, que D. Juan d’Áustria, o heróico vencedor dessa célebre batalha naval, simbolizou (e que de nenhum modo equiparo, nem o melhor creme da direita espanhola jamais equiparou, com Francisco Franco Bahamonde).

Ora, os espanhóis que do centro passaram para a esquerda ou para a direita não eram propriamente devotos de Sancho Pança. Cansados de tensões, quando em 1977 e em 1979 votaram a favor do centro, eles queriam simplesmente uma distensão. E fundamentalmente continuam a querê-la. Mas tendo verificado que Adolfo Suárez (até 1981) e Calvo-Sotelo (de então para cá) lhes impunham como ambientação da distensão (perdoe-me o leitor os dois ãos) a paz de Sancho Pança no reino de Sancho Pança, desgostaram-se.

E foram procurar a distensão alhures. Segundo simpatias instintivas, uns foram para a esquerda, e outros para a direita. Mas continuam a constituir um só bloco psicológico, dentro do PSOE como da AP, ligado por debaixo da fronteira partidária por invisíveis mas firmes vinculações temperamentais. Se os centristas que fugiram de Sancho Pança rumo ao PSOE forem solicitados para um programa definidamente socialista, vazarão do PSOE para a AP. Como se, estando no poder, esta última quisesse realizar um programa muito direitista, os centristas nela instalados vazariam para o PSOE.

Ora, acontece que quem estará no poder é o PSOE. A ele é que cabe executar o programa. São dele os ex-centristas que podem vazar para a AP. E se ele não executar seu programa, a fim de conservar a adesão dos neófitos desejosos de distensão, outra desventura parece esperá-lo, inevitável. Pois começará a sofrer o apedrejamento da sua frustrada maioria quixotesca.

Compreende-se pois que a charge do "ABC" - que reproduzimos nesta página – apresente tão fatigado e perplexo o partido majoritário.

Para os direitistas ficam as alegrias da oposição, o deleite hispânico salgado de ser "do contra". Percebe-se no ar que os "pró-distensionistas" do centro que rumaram para a AP tinham, a crepitar-lhes no fundo dos anseios de distensão, renovados gostos pela tourada, pelas castanholas. Li certa vez que quando D. Juan d’Áustria venceu os turcos em Lepanto, agradeceu à Virgem Auxiliadora. Mas também dançou uma "gallarda". É gente que tem saudades da "gallarda" de D. Juan d’Áustria. Tais ex-centristas darão menos trabalho à direita do que os distensionistas da esquerda ao PSOE.

* * *

Mas aí aflora outro problema. Tudo se fez para inocular à Espanha de pós-Yalta o espírito otimista, pragmático, a-ideológico, supinamente burguês e falho de luzes cavalheirescas, que se espalhou pelo mundo. Esse espírito, que teve na era Truman seu cinzento apogeu, levou ao soçobro o anticomunismo no mundo, e prostrou de joelhos um Ocidente trêmulo e desvirilizado, ante uma Rússia sanhuda, de "knut" em punho. A Espanha, a labareda de coragem da Cristandade, parece ter-se dado conta de que este espírito desfigurava sua identidade, a deturpava, a desviava de sua missão. Rejeitou o centro, fulcro dessa ideologia sem Fé e sem fibra. E se volta mais uma fez encantada, a contemplar nos espaços dourados da memória nacional, D. Juan d’Áustria, o cavaleiro de Lepanto, a dançar para todo o sempre sua "gallarda", ante um mar coalhado de cadáveres dos vencidos. Esta centelha de "caballerosidad" encontrará no mundo outros espaços onde propagar sua chama brilhante e ágil?

Assunto sutil, deslumbrante... para alguns irritante. Fica para outro dia. Talvez.