Plinio Corrêa de Oliveira

 

Artigos na

 "Folha de S. Paulo"

 

 

 

 

 

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1º de novembro de 1980

Muita e muita coisa a ler

Acabo de ler neste jornal (28 de outubro de 1980) as declarações do cardeal Lorscheider, arcebispo de Fortaleza, acerca do discurso – já hoje famoso – em que o general Coelho Neto, comandante da 4ª Divisão de Exército, denunciou a gravidade da infiltração comunista na Igreja e no Estado brasileiro. O purpurado afirma pura e simplesmente: "O que menos pode existir é um bispo comunista".

Impossibilidade teológica? Está na natureza da função episcopal que um bispo não possa ser comunista? O sr. dom Aloísio Lorscheider não envereda por aí. Pois notoriamente pode haver bispos comunistas.

A razão dessa impossibilidade ele a funda num raciocínio inteiramente outro. Utilizando suas próprias palavras, procuro articular o raciocínio dele:

1º) "Ninguém mais acompanha os bispos do que a Santa Sé (...) por mais que o SNI acompanhe, nunca acompanhou como a Santa Sé";

2º) Ora, "se a Santa Sé tivesse dúvidas sobre algum bispo, ele há muito tempo já teria sido afastado de seu encargo";

3º) De onde, nenhum dos bispos que atualmente regem dioceses é comunista;

4º) Em consequência, o general Coelho Neto errou.

Sem dúvida, esta maneira de refutar o distinto militar oferece vantagens ao sr. dom Aloísio. A partir daí, entrincheirado na sua posição apriorística, o purpurado pode recusar-se a examinar qualquer das provas que o general lhe apresente: desde logo são absurdas. Por mais claras e concludentes que sejam, não podem deixar de ser absurdas...

Como isto é cômodo!

Ademais, enseja uma tentativa para apanhar em má postura o comandante da 4ª Divisão do Exército. Na lógica do cardeal-arcebispo de Fortaleza, quem afirma que há um bispo comunista se levanta "ipso facto" contra o próprio Papa. Publicitariamente falando, o lance é destro. Ou o general Coelho Neto emudece envergonhado, ou investe contra o Papa. Neste último caso, ele levanta contra si todo o Brasil católico.

Contudo, as argumentações apriorísticas, mesmo quando cômodas e destras, não resistem à análise. Parece-me que tal ocorre no presente caso.

Passo a oferecer ao leitor meus reparos ao raciocínio do purpurado.

1º) Obviamente, o Sumo Pontífice não pode inteirar-se por si mesmo de quanto fazem os cerca de 350 senhores bispos que há no Brasil. Ele precisa ter informantes. Entre estes, ninguém mais qualificado do que os cardeais brasileiros.

O juízo do Papa sobre um bispo fica portanto condicionado, em ponderável medida, pelo que os cardeais observem. Dizendo que não há bispos comunistas no Brasil porque senão o Papa o saberia, dom Aloísio diz, implicitamente, mais ou menos o seguinte: se houvesse bispos comunistas no Brasil, eu o teria visto, e disto teria, como cardeal, informado o Papa. Ora, eu não vi tal. Logo, não há tal.

Em suma, o general Coelho Neto errou. E a prova disto está em que o sr. cardeal-arcebispo de Fortaleza afirma que ele está errado. Em última análise, a certeza dele, cardeal, o dispensa a priori de qualquer argumentação, e anula qualquer documento.

É bem precisamente o que eu chamaria um círculo vicioso.

2º) Há na argumentação do sr. dom Aloísio Lorscheider outra lacuna fundamental. Consiste na enorme ambiguidade da palavra "comunista". No caos contemporâneo, há marxistas que recusam o qualificativo de comunistas, se bem que todo o mundo os tenha por tais. Allende foi disto um exemplo característico. Há também comunistas que recusam chamar-se marxistas. E há sobretudo a vasta gama dos marxistas semi-comunistas e dos comunistas semimarxistas. E há, por fim, que tomar em linha de conta a proliferação de quiproquós acerca dos comunistas que se proclamam socialistas, dos socialistas que recusam chamar-se comunistas etc. Em suma, tal é a amplitude da palavra comunista, que o cardeal Lorscheider teria andado muito cauto se tivesse começado por dizer em que sentido lhe parece que o general Coelho Neto a usou.

Em nossa linguagem corrente, "comunista" tem ainda outra dimensão: abrange qualquer pessoa que, dizendo-se embora não-comunista, se afirme ateia, favorável à abolição da família e da propriedade privada.

Sempre na linguagem corrente, este último ponto – o da propriedade privada – tem um valor sintomático todo especial. Se alguém é ateu, não é simplesmente por isso que se o chamará de comunista. Se alguém é a favor da diluição e por fim do desaparecimento da família, será necessário raciocinar algum tanto para provar a muito brasileiro médio que esse alguém é comunista. Mas se alguém é favorável à abolição da propriedade privada, então o brasileiro médio o tem por obviamente comunista.

E daí se ramificam ainda outras acepções do vocábulo. Quem não se diga explicitamente favorável à propriedade privada, mas reivindique tais limitações desta, que ela fique exangue e agonizante, pode ser qualificado de comunista: ou porque aceita de modo mais ou menos subconsciente o princípio da comunidade de bens, ou porque é um criptocomunista que não ouse desmascarar-se de todo.

Isto posto, na linguagem corrente, o que é um bispo comunista? Será necessariamente filiado ao PCB ou ao PC do B? Ou deseja a abolição da propriedade privada? Ou, pelo menos, se exprime a respeito dela de modo a ressumar toda a sua antipatia contra ela?

Considere-se por exemplo qualquer das poesias de dom Pedro Casaldáliga que transcrevi em livro recente ("A Igreja ante a escalada da ameaça comunista – Apelo aos Bispos Silenciosos", Editora Vera Cruz, São Paulo, 4ª ed., 1977, 223 pp).

Se, lidos esses textos, alguém tiver a impressão de que involucram uma rejeição da propriedade privada, a culpa disto de quem é, senão do próprio prelado? Eu, por exemplo, sinto assim. E não estranha que o mesmo aconteça com o General Coelho Neto.

E à vista disto, do que vale o sr. cardeal Lorscheider dizer que estamos errados pelo simples fato de que ele está em desacordo conosco?

3º) De minha parte, enquanto católico, eu desejaria que a tomada de posição do purpurado em face das declarações do general Coelho Neto fosse bem outra. Em lugar de "não é, porque eu disse que não é", o cardeal Lorscheider deveria responder com um desafio: o general exiba as provas do que diz. Então o público, mais do que este, a Hierarquia eclesiástica brasileira, e mais do que esta, o próprio Papa poderá ter uma noção clara da realidade.

Tenho, porém, minhas dúvidas de que o sr. cardeal Lorscheider enverede por aí. Porque então – segundo estou certo, e segundo estão certos incontáveis brasileiros – o cardeal e eventualmente os outros conselheiros e informantes do Sumo Pontífice, teriam muita e muita coisa a ler...


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