Plinio Corrêa de Oliveira

 

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 "Folha de S. Paulo"

 

 

 

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7 de janeiro de 1979

Desde que se case com José

Pelo que ouço de quando em vez em torno de mim, e também leio nos jornais, está se generalizando o hábito de conceituar a democracia de dois modos diversos. Não, evidentemente, quanto à substância dela. Pois em sua imensa maioria, os brasileiros concordam em que a democracia consiste na soberania do povo, realizada em todos os níveis do Estado, pelo regime representativo, bem como na afirmação e tutela de todas as liberdades individuais, desde que – segundo a fórmula clássica – não ofendam "a ordem pública e os bons costumes". Em suma, a democracia dos insurrectos da Independência norte-americana, dos revolucionários franceses de 1789, ou dos nossos constituintes de 1891. Tudo pensado nas perspectivas do laicismo de Estado. E atualizado com leis de sentido social, mais amplas ou menos segundo o paladar de cada qual.

Faço notar de passagem que, principalmente quanto ao laicismo de Estado, e portanto ao modo laico de conceber a soberania popular, bem como quanto à amplitude não raras vezes exagerada com a qual, segundo essa visão da democracia, se concebem as reformas sociais, tal conceito está em desacordo com o que seria conforme o ensinamento tradicional dos papas – uma democracia de inspiração cristã (cfr. Pio XII, Radiomensagem do Natal de 1944, "Discorsi e Radiomessaggi" vol. VI, pp. 238-240). O que, aliás, não confundo com democristianismo.

Contudo, dito isto, faço aqui abstração dos ensinamentos tradicionais da Igreja sobre democracia. Interessam eles a quem estude os aspectos doutrinários da matéria. Por isso abstenho-me também de considerar teoricamente a democracia em si. E me cinjo a fazer tão só um estudo de dimensões jornalísticas, inevitavelmente avantajadas, de atitudes da hodierna opinião pública em face da democracia como ela é correntemente concebida.

Esta última matéria contém mais de um pomo de discórdia. Escolho um, para hoje tratar dele. É relativo a qual seja a atitude com que a democracia se defenda – em coerência com seus princípios – contra os adversários. Dou-lhe preferência por sua especial atualidade, a esta altura do processo de liberalização em que o País se acha empenhado.

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1. Como escrevi, ouço e leio por vezes que, na democracia verdadeira – com soberania popular, e com as liberdades individuais dela indissociáveis, notadamente a de opinião – deve ser garantido a cada indivíduo o direito de divergir de certas pautas de ação. Porém a divergência não seria lícita no tocante a uma tríplice pauta, tida por fundamental. Isto é, como liberdades básicas do homem: liberdade de consciência, de pensamento e de religião. Copio essas palavras quase textualmente de um autor cujo talento e competência merecem louvor, porém que não menciono pois em nosso País as divergências doutrinárias facilmente degeneram em insípidas retaliações pessoais, para as quais, em minha longa vida de polemista católico, nunca tive atração.

Parece-me que a consequência deste modo de entender a democracia é que o povo não é soberano. Pois o poder soberano é essencialmente supremo. E se alguém tem o direito de dizer ao povo soberano que há uma "pauta fundamental" na qual ele não pode introduzir nenhuma modificação, o verdadeiro soberano deixa de ser o povo para ser esse alguém.

Assim, tal "pauta" de intangibilidades fere desde logo a intangibilidade da soberania popular. Ou seja, o que a democracia laicae a seu modo a democracia de inspiração cristãtem de mais medular.

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2. Aliás, não compreendo como se pode arvorar em tabu intangível – e portanto insuscetível de ser discutido e rejeitado – a tríplice liberdade de consciência, pensamento e religião sem com isto cair, sob outro ponto de vista ainda, numa contradição insolúvel. Pois a tese de que aquela tríplice liberdade é a "pauta fundamental" da democracia, é uma opinião. E se toda opinião é passível de ser discutida e rejeitada, disto tem de ser passível a pauta da tríplice liberdade. E assim se chega à conclusão de que a intangibilidade da tríplice pauta (e em vez de falar de pauta, por que não falar francamente em dogma, já que este último é um ensinamento intangível segundo o qual se devem pautar os pensamentos dos homens?) não só nega a soberania popular, como vimos no item anterior, mas também a liberdade de opinião, com o que esvazia a própria democracia.

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3. Bem compreendo que se pode alegar, em favor dessa incongruência democrática, a necessidade de que a democracia se defenda contra seus adversários. Mas essa defesa, ou há de consistir na livre discussão, cortês e límpida, e na persuasão eficaz, de sorte que o povo soberano se conserve inarredavelmente fiel aos princípios democráticos, ou se fará pela repressão dos discordantes. E nesse caso a defesa da democracia será antidemocrática. Nesta última hipótese, no próprio ato em que a democracia se defendesse, ela se suicidaria. Pois, se há uma lei que proíbe o povo de ser outra coisa senão favorável à tríplice "pauta", a democracianão se mantém pelo soberano discernimento e pela soberana vontade do povo soberano, mas pela vontade e pela força de alguns.

Suponhamos uma lei imposta pelo legislativo de ontem que proíba ao povo mudar de opinião hoje. Ou uma lei imposta pelo legislativo de hoje que ao mesmo povo proíba mudar de opinião amanhã. Em qualquer caso, uma lei apoiada em penalidades. Uma ou outra lei, "democrática", puniria o livre exercício da soberania popular.

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4. Mas, no caso da democracia "pautada", o que é abertura? – É apenas uma mudança de "pautas". E não uma supressão de toda e qualquer pauta. Até há pouco, crime era lutar contra o princípio e a instituição da propriedade privada. Agora isto deixaria de ser crime. E passaria a ser crime atentar contra a tríplice pauta.

Segundo a estrita lógica do democratismo laico, isto implica, não em desatar de quaisquer liames a soberania popular, em a tornar efetiva e notória, mas simplesmente em trocar de lugar o liame. Ontem, ele atava com as penas da lei o braço esquerdo. Hoje, ataria o braço direito.

Francamente, isto não é democratizar.

Dizer ao povo que ele é livre de caminhar para onde queira, desde que seja na tal tríplice pauta, faz lembrar algo que, à maneira de gracejo, se contava outrora. Era o caso de um pai que, blasonando de liberal, dizia: "Minha filha pode casar com quem quiser, desde que seu escolhido seja o José".

* * *

5. Na democracia o povo é rei. Quando um rei é volúvel, qual o remédio? É estabelecer acima dele um super-rei? Mas a esse super-rei, quem controlará? Outro rei ainda mais "super"? Se o remédio consiste em uma lei que controle a soberania popular, repito que, em certos casos, a democracia pode ficar realmente sem defesa, sob pena de suicidar-se.

Mas ela tem um caminho para se defender sem suicidar-se. E francamente não vejo outro. É que se batize. Digo "batize", pois cumpre lembrar que tudo quanto acabo de comentar se refere especificamente à democracia leiga.

Uma democracia de inspiração genuinamente cristã reconhece ao povo o direito de legislar livremente, desde que, porém, não transgrida os ensinamentos e preceitos emanados de Deus, Soberano verdadeiro, Rei e Pai de todos os homens, infinitamente sábio e bom. E na reta destes preceitos nada resulta em ruína.

A autoridade de Deus é a única que pode - no rigor da doutrina católica – circunscrever a soberania do poder temporal, qualquer que seja a forma deste, monárquica, aristocrática ou democrática. A não ser isto, ficam os povos sujeitos realmente à volubilidade do soberano, seja este um rei, uma aristocracia ou a plebe.

Abstração feita de Deus, confinar a soberania em "pautas" estabelecidas por meros homens, por mais inteligentes, cultos e experientes que sejam, e ainda que essas pautas coincidissem formalmente com a lei de Deus, seria, em última análise, transferir a soberania a esses homens...

E quem, senão Deus, ótimo e máximo, não é volúvel? Esses homens?

* * *

Naturalmente fica de pé uma questão. É bem certo que, nas atuais circunstâncias, o laicismo de Estado não vai ser abolido. Para ser otimista, pelo menos a prazo médio. O que fazer então, até lá? Dizer olimpicamente ao País, que se arranje como puder, e dar tudo por perdido? É claro que não.

Antes de tudo, não carreguemos as tintas negras inerentes ao quadro. Enquanto durar a configuração dos dias atuais, não é verdade que a opinião pública (ou, até mesmo, a opinião que se publica, coisa que pode ser bem diversa) seja tão volúvel nesta matéria. Em outros termos, a formação anticomunista persuasiva conserva uma boa margem de eficácia.

Durante toda a minha vida pública, consagrei-me a uma ação anticomunista de caráter essencialmente suasório e pacífico. Da utilidade dessa ação dá provas o furor contínuo que ela desperta na vasta coorte de comunistas, socialistas, companheiros de viagem, inocentes-úteis etc. Furor este manifestado, ora por um infatigável e generalizado zunzum de calúnias, ora por estrondos publicitários de dimensões faraônicas. Não se tem tanta sanha contra o que é irrelevante, nem se mobiliza tais meios de ação contra o que é inócuo.

Eu estaria, pois, em contradição comigo mesmo, e passaria um atestado de inutilidade à minha ação pública, se pensasse que, francamente aberta ao anticomunismo a faculdade legal de argumentar, não obstante está tudo irremediavelmente perdido. Usemos, pois, esta faculdade largamente, com desassombro e sem prejuízo do respeito e até da cordialidade que a discussão de alto bordo doutrinário exige. Pois – repito – uma via transitável continuará aberta ao patriotismo dos que, como eu, se preocupam sem desfalecimentos, com o perigo comunista.

Há mais. Diz-se que Deus é brasileiro. Exatamente no momento em que escrevo, a conferência de Puebla brilha como uma luz nascente aos olhos de muitos bons brasileiros. Se ela confirmar as esperanças que vai despertando aqui ou acolá, poderá minguar o perigo do comunismo, em uma das frentes que com maior eficácia tem este utilizado: o ambiente católico. E será possível conter essa apresentação deformada que hoje se faz da Religião para justificar o ateísmo e o coletivismo. Como não ver que a controvérsia anticomunista de inspiração católica, na legalidade e na paz, ganhará então novos e preciosos trunfos?

Mas a esta altura abre-se outro tema, ao qual talvez eu dedique simetricamente outro artigo. Mas depois de Puebla.

Ver-se-á então por quê.


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