"Folha de S. Paulo", 6 de dezembro de 1978

Silêncio, a grande lição

Como no mundo inteiro, a democracia tem no Brasil adeptos e opositores. O que vem acontecendo invariavelmente ao longo de toda a História da humanidade, com as diversas formas de governo – monárquica, aristocrática ou democrática – que, matizadas quase ao infinito, os homens têm ideado e experimentado.

Por maiores que sejam as divergências neste campo, é bem certo que essas formas de governo em si mesmas são compreensíveis e defensáveis. Nesta matéria, entretanto, há algo que nem é compreensível, nem defensável; a contradição.

Ora, nada a meu ver é mais contraditório com a democracia do que depender ela do voto obrigatório para funcionar. Pois na medida em que o povo, no seu conjunto, é a mais alta instância do País, é, enfim, segundo o jargão jurídico-político, o grande soberano, não vejo como esse povo possa ser obrigado a votar. Seria o mesmo que obrigar um monarca a exercer seu cargo. Quem tivesse poder para tal seria, ele sim, o verdadeiro monarca. Pois quem tem o direito de mandar no rei é o único verdadeiro rei. E quando o voto popular é obrigatório, o poder supremo não é do povo, mas de quem obriga o povo a votar.

Ademais, se um eleitor não tem convicções políticas nem ideais patrióticos que livremente o levem a votar, confessa sua incapacidade intelectual ou moral. E se, com fundamento nessa incapacidade, ele se recusa a votar, obrigá-lo ao voto é o mesmo que obrigar um rei desinteressado ou incapaz, a governar.

Por fim, que vantagem traz ao Estado o voto assim extorquido? De que valor pode ele ser para a determinação dos rumos nacionais?

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Todas essas considerações se prendem ao resultado das ultimas eleições.

Segundo dados definitivos referentes ao Estado de São Paulo – tomo-os como exemplo – 11,3% dos eleitores se abstiveram, 11,3% votaram em branco e 9% depositaram nas urnas votos nulos. Nos outros Estados da Federação, ao que parece, essas porcentagens foram, em geral, mais elevadas. Assim, no total, 31,6% ou mais dos brasileiros se declararam desinteressados. A soma é considerável, e despertou múltiplos comentários.

Não vi, entretanto, que alguém se perguntasse bem de frente a que total chegaria essa cifra, se o voto não fosse obrigatório, e cada eleitor "soberano" fosse bastante soberano para ter a liberdade de não se ver pego pelo cangote e arrastado à respectiva secção eleitoral. É certo que os resultados espantariam.

Na medida em que o voto obrigatório é uma contradição da democracia, é inegável que nossa democracia, funcionando à unha, e assim mesmo com impressionante número de eleitores que preferem resistir à unha da lei a exercer o direito soberano do voto, é contraditória.

O remédio? – Consiste em interessar os eleitores nos temas políticos, sociais e econômicos. Ou em inserir no debate público os temas políticos, sociais e econômicos que interessem o eleitor. Ora, o resultado das eleições bem prova que o cardápio de temas oferecido aos nossos eleitores, por ocasião do último pleito, esbarrou no fastio de muitos. Da maioria, talvez.

É preciso arejar, ampliar, enriquecer opulentamente o debate político. Tirar-lhe quanto possível o personalismo tacanho, e oferecer aos eleitores, muito menos a monótona miríade de fotografias de candidatos que besuntam, no período eleitoral, todas as paredes disponíveis, do que os programas dos partidos.

E para isso é indispensável que a imprensa, a televisão e o rádio coloquem ao alcance do eleitor todos os problemas autênticos, e todos os argumentos pró e contra as várias soluções.

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Dou dois exemplos característicos de quão raramente isto sucede.

Na legislatura que ora se encerra, foi aprovado o divórcio. O grande tema deveria ter sido objeto de discursos, de conferências públicas com debates, de distribuição de brochuras substanciosas, interessantes e acessíveis, de artigos de jornal, de polêmicas enfim, que lhe dessem toda a vitalidade no espírito público. Em outros termos, enquanto o assunto não fosse objeto de conversas animadas e entretidas, até nos atos da vida social e na intimidade dos lares, não haveria condições para que o público sobre ele se pronunciasse autenticamente. Procure-se algo desse material. O que se encontra? Só vejo a grande Carta Pastoral sobre o divórcio, dada a lume pelo insigne bispo de Campos, D. Antônio de Castro Mayer, em 1975.

Diga-se de passagem que os pronunciamentos feitos sobre o divórcio pela CNBB como um todo, e por alguns outros prelados a título individual, me pareceram de uma pobreza lastimável. Ou pelo menos foi de uma lastimável pobreza o que sobre eles publicaram os jornais.

O mesmo se poderia dizer dos discursos dos deputados e senadores. Recebi de alguns parlamentares antidivorcistas pronunciamentos substanciosos. É possível que o senador Nelson Carneiro e outros divorcistas tenham feito pronunciamentos igualmente substanciosos. Eles não mos enviaram, com certeza por me julgarem, a justo título, um "inconversível". Mas o que deles li nos jornais também, era pobre. O resultado: num delírio de entusiasmo de galerias artificialmente superlotadas, o legislativo aprovou o divórcio, enquanto a nação cochilava. Posta em prática a medida, quase ninguém a utilizou. A nação continuou a cochilar junto ao quitute quente e envenenado que o Congresso lhe serviu.

Quando o povo elegeu os congressistas que impingiram o divórcio ao Brasil, fica assim patente que o povo nem por isso queria o divórcio. Do ponto de vista da autenticidade democrática, o que significou então o divórcio entre nós?

Outro exemplo é o da lei do inquilinato. Uma fatia majoritária das populações urbanas é constituída por locadores e locatários. O assunto deveria ser, para uns e outros, de uma atualidade candente. Pois é o próprio orçamento individual e doméstico que entra em jogo no problema.

Entretanto, a imprensa, a televisão e o rádio de nenhum modo deram cobertura proporcional ao magno tema. Tanto quanto eu saiba, a maioria dos candidatos esquivou-se de tomar posição sobre ele. E no momento em que escrevo, o Congresso vai deliberando sobre o assunto ao apagar das luzes, impingindo ao País, ao que tudo indica, uma lei de inquilinato a qual não teve nenhuma relação com a escolha dos atuais, nem dos futuros candidatos.

Em que medida representam uns e outros, neste tema, o pensamento da nação soberana? Em que medida foi mesmo esta que decidiu algo na questão?

Se voltarmos os olhos para os problemas econômicos, ou sócio-econômicos, os quais a todo momento estão sendo afetados pelas leis, regulamentos e portarias de que é fecundo nosso País, hoje, mais do que nunca, seria um não mais acabar.

O povo nem sequer tem tempo de formar opinião sobre o que os técnicos e os homens de negócios (estes com influência cada vez menor), vão decidindo sobre o assunto. Mas como então reputar que é autenticamente o povo que quer o que eles decidem?

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Em suma, a alternativa está claramente posta diante de nossos olhos. O Estado legisla continuamente. Se não há um esforço publicitário hercúleo para informar de modo genuíno e atraente a opinião pública sobre o que os candidatos desejam legislar, e os legisladores realmente legislam, o povo fica à margem. Os eleitores, desinteressados, só votam a laço. E a democracia tende a transformar-se numa ficção.

No tempo em que aos povos era lícito aplaudir os reis, não porém vaiá-los, o povo tinha um recurso para exprimir nas ocasiões em que estava descontente. Calava-se à passagem dos reis. Daí o provérbio bem conhecido: "O silêncio dos povos é lição para os reis". O desinteresse dos eleitores é lição para a classe política, como também para a classe publicitária.

Digo, não para increpar, mas para exprimir minha livre opinião de brasileiro. Pois realmente não vejo como, se perdermos a ocasião oferecida por este élan democrático, poderemos ter uma democracia coerente. E o que em matéria de democracia, como de qualquer outra forma de governo, não se pode querer é que ela seja contraditória...

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Sumário

O resultado das últimas eleições trouxe uma grande lição para as classes política e publicitária: o desinteresse de impressionante número de eleitores, apesar de o voto ser obrigatório. E quão maior seria esse desinteresse se não fosse essa obrigatoriedade.

Qual o remédio?

Como evitar que, enquanto o Estado legisla continuamente, o povo fique à margem, os eleitores, desinteressados, só votem a laço, e a democracia tenda a transformar-se numa ficção?

Ou seja, como poderemos ter uma democracia coerente, e não contraditória?