Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Artigos na

 "Folha de S. Paulo"

Janeiro de 1979 - Almoço oferecido pela "Folha de S. Paulo" aos colaboradores de sua secção "Tendências e Debates". Vê-se o prof. Plinio Corrêa de Oliveira à esquerda do diretor do jornal, Octávio Frias

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24 de agosto de 1978 

O Cunctator: um maximalista? 

 

23 de outubro de 1978: o histórico abraço entre o Papa João Paulo II e o grande amigo Cardeal Stefan Wyszyński, arcebispo de Varsóvia e primaz da Polônia 

Na primeira reunião preparatória do conclave a que compareceu o cardeal Wyszynski, arcebispo de Varsóvia, informou estar programada uma romaria a pé de 300 mil poloneses – entre os quais 7.500 universitários – ao famoso santuário de Nossa Senhora de Czestochowa, a fim de implorar para os cardeais as luzes do Céu com a finalidade de que a Igreja tenha um novo Papa condizente com as difíceis condições dos dias que correm. Uma expressiva salva de palmas dos demais cardeais coroou as palavras de Mons. Wyszynski.

Para isto não faltavam razões.

Antes de tudo, o caráter marcadamente espiritual da iniciativa, o qual repousa e areja os espíritos saturados com a obsessão sócio-econômica que invadiu a Igreja nos últimos tempos.

Ademais, a constatação de que, sob a espessa camada de gelo do regime comunista, há na Polônia um fervor religioso que desperta em tão grande massa humana o ânimo necessário para a longa caminhada (Varsóvia-Czestochowa: 240 km). O que particularmente impressiona, tomando em conta a subnutrição conatural a toda economia comunista.

Especialmente é simpática a referência aos 7.500 universitários.

Mons. Wyszynski apareceu assim, aos olhos dos eleitores do futuro Papa, como a figura carismática, ou quase tanto, que conseguiu preservar das investidas do ateísmo os seus fiéis. Já era esta a sua legenda. Dizia-se de há muito, e ainda repercute nos meios de comunicação social das mais diversas posições ideológicas no Ocidente, e (o que é infinitamente mais importante) se repete à boca pequena nos mais variados círculos intelectuais e sociais do mundo livre, que o Prelado polonês conseguiu uma fórmula de convivência entre a Igreja e o comunismo.

Já que essa fórmula corresponde a uma fundamental conveniência da humanidade (ou seja, evitar tensões religiosas que favoreçam uma guerra entre o Oriente e o Ocidente), a pergunta que naturalmente se põe é se a legenda que cerca o arcebispo de Varsóvia fará dele um "papabile".

A cardinalícia salva de palmas de que ele foi objeto bem pode ser interpretada como uma cardinalícia aprovação à sua política em relação ao comunismo. E, nesta perspectiva, não parece demais imaginar que diante das naturais dificuldades de se ajustar uma candidatura capaz de obter a totalidade dos sufrágios, ou quase tanto, o Sacro Colégio opte por aclamar Papa ao arcebispo de Varsóvia, festejado tanto pela direita, quanto pelo centro e pela esquerda.

Neste caso, um homem-símbolo, um homem-programa ascenderia ao trono de São Pedro.

Símbolo do quê? Programa do quê?

É o que restaria definir.

Idem

Tentarei fazê-lo, apresentando a linha de ação de Mons. Wyszynski em seus aspectos mais aplaudidos:

1. Além da cortina de ferro, o bloco católico mais compacto e influente é constituído pela Polônia, com seus trinta milhões de católicos. Posto o fato de que, ao fim da última guerra, os ocidentais abandonaram ingloriamente – para dizer só isto – a heróica resistência dos católicos poloneses, ao mesmo tempo antinazistas e anticomunistas, esse grande bloco foi sepultado na noite tenebrosa da dominação comunista.

2. Para se tornar efetiva, a dominação soviética encontrava dois obstáculos: a secular alergia dos poloneses ao colonialismo russo e, principalmente, a incompatibilidade entre a catolicíssima população polonesa e o regime marxista, o qual é, por definição, ateu, amoral e igualitário. Tais obstáculos impunham para os comunistas de Moscou uma alternativa: colonizar mais uma vez a Polônia, sujeitando-a brutalmente a procônsules russos, e ao mesmo tempo desencadear no país uma perseguição religiosa neroniana; ou então conceder à nação um "minimum" de autonomia, governá-la por meio de comunistas poloneses e não russos, e ao mesmo tempo reconhecer à Igreja um "minimum" de liberdade.

3. Evidentemente, a segunda fórmula era a única praticável. Sobretudo tendo em vista o princípio de Napoleão segundo o qual tudo se pode fazer com baionetas, exceto firmar na ponta delas um trono estável. Mas, para os soviéticos, a sabedoria política não consistia só em optar pela segunda fórmula, como também, e muito principalmente, em determinar esse "minimum" a ser concedido, na Polônia, ao sentimento nacional e à Fé. O ponto delicado consistia em saber se aquele e esta se contentariam com um "minimum" que lhes permitisse tão somente sobreviver. E em condições tão precárias que, com o curso dos tempos, o comunismo conseguisse extinguir tanto a Fé quanto o sentimento nacional. Do contrário, a concessão desse "minimum" seria, para os soviéticos, uma capitulação.

4. Vendo a situação exatamente com os mesmos olhos do que seus opositores comunistas, Mons. Wyszynski teria optado por aceitar esse "minimum". Mas aceitá-lo sagazmente, aproveitando-o ao máximo para manter acesa a Fé. E ao mesmo tempo reagindo corajosamente contra todas as tentativas comunistas de reduzir gradualmente esse exíguo "minimum". Sagacidade e coragem: precisamente as duas virtudes que refulgem na legenda wyszynskiana.

5. O resultado teria sido que, evitando desse modo para a Polônia os horrores de uma perseguição religiosa, Wyszynski conservou para seu povo o dom inestimável da Fé.

Um resultado brilhante, sem dúvida. Tão brilhante que dele se evola uma legenda. É a de Wyszynski, o "Cunctator", isto é, o contemporizador, do qual se poderia dizer, como de seu célebre congênere romano, Fabius que "cunctando restituit rem". Também Wyszynski, contemporizando, teria salvo a causa pública.

As legendas criam clima ingrato para certo gênero de análises. Se o cardeal polonês conseguiu defender milímetro por milímetro a minúscula área de liberdade que o comunismo deixou à Igreja, é porque dispôs sempre de instrumentos eficazes. No caso concreto, esses instrumentos se reduziam à perspectiva de transformar a Polônia em um braseiro humano, à maneira do que foi a católica Espanha quando da invasão da península pelas tropas revolucionárias e anticlericais de Bonaparte. E se tal perspectiva conteve os soviéticos nos devidos limites, é o caso de perguntar se o Cardeal-Cunctator não teria agido melhor sendo um Cardeal-Cruzado. Em outros termos, se desatasse sobre os procônsules soviéticos o tufão de uma oposição religiosa como a que prostrara por terra o próprio Napoleão.

Essa pergunta se impõe em rigor de lógica. Mas ela contém em seu bojo muitas como que "subperguntas", para as quais o público do Ocidente não tem sequer os elementos de uma resposta. Por exemplo, não estaria exausto, na pobre e gloriosa Polônia de após-guerra, o espírito combativo, tão vivaz nos espanhóis? Poderia um surto de inconformidade épica e sacral do povo polonês contar com o apoio anglo-americano, análogo ao que a Inglaterra do século 19 (movida por britanicíssimos interesses, diga-se) deu aos espanhóis, enviando Wellington à Península? E assim por diante.

Toda legenda é brilhante, atraente, encantadora. Mas também agressiva. Ai de quem procure discutir com ela. Não terei essa temeridade, neste restinho de artigo. Nem me move o desejo de questionar essa legenda, à vista da simples hipótese de o Cardeal-Cunctator ser aclamado Papa.

Ao lado das legendas só vive bem a esperança. Manifesto a minha. É a de que Wyszynski o Cunctator, se se assentar no supremo trono de São Pedro, multiplique a sagacidade pela sagacidade, a coragem pela coragem e a legenda pela legenda, e dê ao mundo o espetáculo deslumbrante de se transformar em um novo Urbano II, o bem-aventurado conclamador da primeira Cruzada.

Pois o afoito minimalismo, quiçá aconselhável para o arcebispo de Varsóvia, não o é, pelo menos nesta conjuntura, para o sucessor de Pedro.

Com efeito, os seiscentos milhões de católicos que há no mundo livre podem nutrir outríssimas esperanças que a de seus queridos e gloriosos irmãos poloneses. Não se trata, para os primeiros, de obter tão só um lugarzinho ao sol, semiesmagados pela bota soviética. Mas, muito pelo contrário, de evitar que essa bota ouse empreender o esmagamento do que resta de livre no mundo. Um programa de ousadias apostólicas, um programa todo feito do que Camões qualificava como "cristão atrevimentos" ("Os Lusiadas", Canto VII, Estancia 14), eis o que espero – e comigo tantos e tantos milhões de católicos! – do sucessor de Paulo VI.

O Cardeal-Cunctator nos aparece rutilante com a glória de legendários e "cristãos atrevimentos" na defesa de um "minimum". Quanto desejamos que ele brilhe no trono de São Pedro com a mesma glória dos "cristãos atrevimentos", porém desta feita na defesa do "maximum". "Ad majorem Dei gloriam" - "Para a máxima glória de Deus", tal era o lema de Santo Inácio de Loiola.

Tanto mais quanto, nos dias que correm, o "maximum" ainda pode ser obtido, quiçá sem a efusão do sangue cristão, do sangue que os cruzados tão esplêndida e generosamente verteram.


Nota: Após o breve pontificado de João Paulo I (3-9-1978 a 28-9-1978), é elevado ao sólio pontifício o Cardeal Karol Wojtyla, Papa João Paulo II, na eleição de 16 de Outubro daquele mesmo ano (cfr. Um homem, uma obra, uma gesta – Homenagem das TFPs a Plinio Corrêa de Oliveira, EDIÇÕES BRASIL DE AMANHÃ, São Paulo, 1989, II Parte, II secção, n. 10)


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