"Folha de S. Paulo", 6 de abril de 1978

O dinossauro e os degraus moles

Tudo já foi dito pela imprensa acerca das eleições na França. Assim, as atenções já não se voltam para elas, mas para seu "lendemain", que vai adquirindo lentamente contornos.

O tema tem interesse e importância.

Interesse, pois a solução de tais problemas exigirá do presidente francês um delicado jogo político. Giscard tem obviamente seu próprio programa pessoal, e deve procurar a combinação partidária que com mais segurança lhe permita realizá-lo. Importa isto em procurar quais os partidos que lhe exijam um mínimo de modificações ao programa, e lhe dêem o máximo de força parlamentar. Para que lado lançará a rede, à procura de aliados? Para a esquerda? Para o centro?

Esta questão involucra outras. Nem todos os agrupamentos constitutivos da maioria vencedora são igualmente seguros para Giscard. Talvez alguns setores da oposição lhe pareçam aliados mais confortáveis e influentes do que outros da situação. Mas a sua aliança com parte da esquerda pode ser muito mal vista em influentes setores centristas.

E assim por diante, os cálculos e as manobras políticas se desdobram num ágil jogo de trapézio que exige uma lucidez, uma sutileza e uma destreza, cujo exercício pode entreter passavelmente, por algum tempo, o grande público.

Estas circunstâncias tornam interessante a análise do "lendemain" das eleições francesas.

Além de interessante, o "lendemain" eleitoral é importante.

A França tem, com a Inglaterra, a Alemanha e o Japão, a categoria de grande nação, inferior apenas aos dois supergrandes, o autêntico, que são os EUA, e o de miragem, ou de "bluff", que é a Rússia.

Abstenho-me de mencionar, nesse rol, a China, inteiramente absorvida pelo seu próprio pesadelo interior.

Igualmente não menciono a OPEP, potência econômico-financeira com projeção política; e não um Estado definido e organizado.

Assim localizada a França, é bem de se compreender o papel de relevo que lhe toca no mundo de hoje. E, com isso, a importância de sua evolução política, tanto interna quanto externa.

Digo tudo isto, para que o leitor sinta que analiso em uníssono com ele o panorama da França e o do mundo, e não me imagine um sonhador quando deixo sair da pena a seguinte afirmação: tudo quanto Giscard possa fazer neste momento está na ordem dos grandes acontecimentos para o país, e de algum modo para o mundo. Não, porém, na dos superacontecimentos.

O superacontecimento francês, do qual não vejo que se trate em nenhuma das correspondências que nossa imprensa cotidiana transmite da Europa e da América do Norte, ei-lo: segundo os dados do Ministério do Interior da França relativos ao segundo turno das eleições, e computados também os votos das circunscrições em que o resultado ficou definido no primeiro turno, a maioria centrista contou com 51,59% dos votos. A minoria esquerdista (comunistas, socialistas e radicais da esquerda), com 48,441%.

Nessas condições a diferença entre a maioria e a minoria foi de 3,18%. Tal diferença é suficientemente pequena para que se possa comparar mais ou menos ao que é num indivíduo uma variação de temperatura de 36 a 36,5 ou de pressão de 11 por 6 a 13 por 7; qualquer pequeno fato fortuito a ocasiona ou a modifica.

Se se põe, portanto, a grande questão: na opção entre a sociedade atual e o regime comunista, "para onde vai a França?", a resposta é: tendo havido como que um mero empate no número de eleitores, ela está na encruzilhada.

Ora, isto não representa, para qualquer dos lados, nem uma vitória nem uma derrota. É pouco mais que a indefinição.

Nessas condições, as magnas perguntas, as perguntas supergrandes, perto das quais as outras empalidecem, são as seguintes: no próximo prélio eleitoral, dar-se-á um desempate significativo e quiçá irreversível? Para que lado? Para a esquerda? Para o centro? – Este é o primeiro grupo de questões.

Para decifrar essas perguntas, é necessário – como veremos – explicar essa outra. Tendo havido quase que um empate quanto ao número de votos, o centro se proclamou ufanamente vencedor porque, em conseqüência de peculiaridades da lei eleitoral francesa, lhe tocou a maioria das cadeiras na Câmara. É uma unilateralidade corrente em política. E, enquanto tal, explicável por si mesma.

Mas a esquerda poderia ter protestado contra essa unilateralidade, e ter realçado que, derrotada quanto ao número de cadeiras, ela não o foi – ou quase não o foi – quanto ao número de votos. E que o campo em que houve para ela essa derrota (o número de cadeiras na Assembléia) é mais de superfície do que aquele no qual se verificou um quase empate (o número de eleitores). Pois este último é que exprime as tendências profundas do eleitorado.

Por que não trombetearam isto os esquerdistas franceses? Por que o PCF, sobretudo, não o alardeou aos olhos do mundo?

Passo a responder a este segundo grupo de questões. Assim chegarei rapidamente ao primeiro grupo.

Feita a análise do resultado das eleições em primeiro turno (o do segundo turno, pelo sistema de "ballotage", é ambíguo), a votação comunista foi de 20,56%, sempre segundo os dados oficiais do Ministério do Interior. Tal votação, não despicienda, vem se mantendo sensivelmente a mesma já de há muito tempo (em 1973 foi de 21,4%). O que põe a nu a extraordinária dificuldade de crescimento do Partido Comunista. Isto, apesar da "toilette" eurocomunista que adotou.

Todo PC tem em vista, não só alcançar o poder, mas operar em seguida a maior das transformações por que possa passar um país, isto é, sua "comunistização".

Ora, Napoleão disse, certa vez, que o mais difícil não é conquistar o mando, mas manter-se nele. Essa verdade, ao mesmo tempo importante e um pouco banal, os comunistas a conhecem perfeitamente. Eles sabem que, para chegar ao poder e realizar seu programa, precisam contar com o apoio de bem mais da metade dos franceses. Logo eles que estão tão longe de ter alcançado, só por si, sequer a metade do eleitorado!

A conseqüência é claríssima para o PCF. Ou ele chega ao poder trepado nas costas de aliados, os deglute em seguida e, aumentado pela substância deles, no poder se mantém; ou o PCF tem de renunciar à vitória e se transformar num mero clube de ideólogos.

O grande aliado natural do PCF, o partido cujas costas parecem feitas para serem escaladas por ele, é o Partido Socialista.

Ao contrário do PCF, hirto, compacto, monolítico, o PS é um "tutti fruti" de esquerdismos diversos. Há nele dosagens de socialismos para todos os sabores. Dentro dele, a contínua fricção entre os matizes mesclados dá uma ilusão de liberdade. Tudo isso satisfaz os espíritos comuns, indecisos, ecléticos, superficiais. De onde, uma capacidade do PS de absorver largas zonas do público, muito maior do que a do PC.

O PC espera muito mais a sua vitória do crescimento do PS, do que o aumento numérico de comunistas.

Ora – e aqui está o ponto – pelos resultados eleitorais dos últimos anos, o PS cresceu muitíssimo pouco: de 19,2% em 1973, para 22,6% em 1978.

De si, isto é decepcionante. Porém, não tão grave assim.

Contudo, acontece que em favor do PS se fizeram, nos últimos anos, os maiores esforços publicitários e propagandísticos. Para não falar senão de um exemplo, os progressistas franceses, em cujas mãos estão em sua maioria, as alavancas publicitárias da opinião católica, fizeram pelo PS o possível e o impossível: ímpeto, jeito, discrição, tudo isto foi sabiamente dosado em tal campanha. E o resultado foi o que se viu: o PS como um organismo mal constituído, resistiu obstinadamente a todas as vitaminas, a todos os fortificantes, a todos os regimes de superalimentação. O que faz ver a extrema improbabilidade de sua expansão nos próximos pleitos. Os dirigentes do PS são comunistas mais ou menos disfarçados. As partes rijas de seu eleitorado também o são. Mas suas partes moles são constituídas, muitas vezes, por gente arrastada por equívocos doutrinários, fraudes propagandísticas ou pura birra oposicionista. Basta que a eventualidade de uma vitória comunista se torne mais próxima, para que essas partes moles votem a favor do centro.

O PS total não é, pois, a verdadeira escada do comunismo. Pois uma escada que tenha alguns degraus duros e outros moles, não pode servir à ascensão de um dinossauro.

Então? – Então aqui estamos: o resultado das eleições francesas mostrou uma esquerda impotente para crescer substancialmente, e sobretudo impotente para manter-se nas alturas a que consiga subir.

Balanço: as esperanças de uma vitória estável do comunismo estão relegadas para o ano 2000, eventualmente.

Alarguemos os horizontes. Isto é assim na França; o comunismo na Espanha tem que se disfarçar até em monarquista para conseguir um lugarzinho ao sol; ele teve que recuar em Portugal; na Itália, ele tem pânico das eleições (como igualmente o tem o seu comparsa o PDC), as eleições também são um fantasma para os trabalhistas ingleses e representaram, há pouco, uma dura lição para os socialistas suecos e alemães; que possibilidades reais tem o dragão comunista, de engolir a Europa, e sobretudo de a digerir depois de engolida?

A resposta decepcionante a todas essas perguntas explica o mutismo do PCF e do PS diante do clangor das trombetas vitoriosas do centro.

Mas isto, assim, que eu saiba ninguém o diz. Por quê?

Esta já é outra questão.

Deixemo-la de lado.