"Folha de S. Paulo", 20 de março de 1978
Tal foi, há algumas décadas, a influência da Igreja sobre o povo brasileiro, que cheguei a formar uma impressão "eclesiocêntrica" sobre a realidade nacional no Brasil, o fator mais influente dos acontecimentos consistia na orientação que lhes dava a Hierarquia. De onde a vida interna da Igreja - em que essa orientação por assim dizer se elaborava – ser, por sua vez, o elemento mais ativo da vida do País.
Bem entendido, essa minha impressão, bastante audaciosa, comportava seus conformes. O mais importante deles salta aos olhos, sendo uma sociedade espiritual, a Igreja se cingia a agir no campo próprio. E só intervinha no campo temporal na medida em que neste ocorresse o risco da transgressão de algum dos mandamentos da Lei de Deus.
Assim, não por fraqueza, mas por nobre consciência das intrínsecas limitações de seu campo de ação, a Igreja se abstinha de influenciar em toda uma enorme gama de assuntos. Quanto a estes, uma concepção "eclesiocêntrica" seria obviamente descabida. Mesmo assim...
Sim, mesmo assim haveria que distinguir. Era só alguém, em uma destas áreas especificamente temporais, sugerir algo de contrário ao ensinamento da Igreja, para encontrar a oposição clara, serena mas inquebrantável, desta. E na confrontação, a Hierarquia o mais das vezes levava a melhor.
Já disse alhures, e aqui repito, que essa imensa influência sofreu acentuada diminuição no Brasil – como aliás no mundo inteiro – em conseqüência da crise progressista que começou a minar os meios católicos, já desde os últimos anos do pontificado de Pio XII.
Como poderia essa influência não diminuir se os fiéis encontram na Igreja a nauseabunda "fumaça de Satanás", a que se referiu pública e oficialmente Paulo VI?
Para lembrar outra afirmação deste, imagine o leitor um lindo palácio construído num ponto elevado de uma cidade. Todos o vêem. Todos o admiram. Dele se ufana a população inteira. Se os donos do palácio se entregam subitamente à demolição deste, e a fachada, outrora esplêndida, vai tomando ares de ruína, como evitar que o prestígio do edifício decaia entre os citadinos? Ora, Paulo VI, ele próprio, aludiu – também pública e oficialmente – ao misterioso "processo de autodemolição" pelo qual vai passando a Igreja. A fonte do prestígio da Igreja é ela mesma. Se ela se autodemole, como imaginar que ela não destrua, "pari passu", seu próprio prestígio?
Um exemplo de autodemolição, causado pela fumaça; ei-lo:
Noticiou a imprensa diária, na primeira quinzena do mês passado, que Paulo VI, ao fazer uso da palavra na audiência de Quaresma, exprimiu seu "pesar imenso" à vista do crescente número de apostasias verificadas nas fileiras sacerdotais. Só em 1975, ocorreram 4 mil deserções de padres, frades e freiras. A tal propósito, Paulo VI disse que "as estatísticas nos conturbam, os casos individuais nos desconcertam, as motivações nos pedem reverência e compaixão, porém nos causam imensa dor".
Que causem imensa dor facilmente se compreende. É bem menos fácil compreender – comente-se de passagem – como considerando em bloco "as motivações" dessas apostasias, Paulo VI afirme que elas pedem "reverência e compaixão". Quanto à compaixão, em vários casos pode ainda explicar-se. Mas a reverência?
Voltemos ao fio do tema.
Acrescenta o noticiário que a maior parte dessas apostasias se dá com vistas ao casamento. Mas que não raro elas ocorrem em razão de uma ruptura doutrinária com a Religião Católica. Essa ruptura – ainda o noticiário – toma, em diversos casos, a forma de uma clara adesão à doutrina de Marx....
Que eu saiba, esses fatos, muito difundidos, não foram desmentidos por ninguém no Brasil ou fora dele. Ora – pergunto – como imaginar que o prestígio da Religião possa não se afetar por fatos tão calamitosos?
Isto não obstante, ainda é interessante comentar dois eventos eclesiásticos ocorridos na semana passada. Um deles diz respeito às Jornadas Internacionais por uma Sociedade Superando as Dominações, aprovadas (se tanto), ao apagar das luzes, na reunião do episcopado em Itaici, por proposta de D. Cândido Padim, bispo de Bauru. A fim de confabularem com a CNBB sobre esse assunto, aqui estiveram, nestes últimos dias, o cardeal Bernardin Gantin, secretariado eficazmente pelo pe. Roger Heckel, S.J., bem como Mons. Etchegaray, arcebispo de Marselha e presidente da Conferência Episcopal Francesa, e outros ainda. Do noticiário e dos comentários da imprensa se infere claramente que as Jornadas visam assestar o estilingue contra todas as formas de desigualdade ainda existente em nossos dias. E nem poupa certas desigualdades existentes na Igreja. Se a tarefa das Jornadas algum dia chegar a termo, não haverá mais dominações. Portanto também não desigualdades. Ou seja, sem que Moscou se tenha comprometido (pelo menos abertamente) na jogada, o mundo terá ficado comunista.
Ora, pasmai, ó povos! Paulo VI parece ter feito sentir reticências quanto às já famigeradas Jornadas Internacionais por uma Sociedade Superando as Dominações – e pasmai, ainda uma vez, ó povos! – o cardeal Lorscheider se teria feito o canal dessas reticências junto ao episcopado brasileiro. No que teria sido abertamente contraditado por d. Helder, o arcebispo-vermelho, o bispo predileto de Paulo VI, o grande amigo do cardeal-arcebispo de Fortaleza.
Tudo segundo disseram ou insinuaram as notícias da imprensa.
Se um grupo de amigos pode ser comparado a uma fruta cheia de vida, cujos gomos aderem estreitamente uns aos outros, dir-se-ia que em algo perdeu de seu viço e coesão a imensa tangerina do catolicismo de esquerda no Brasil. Os gomos parecem ir-se desconjuntando...
Neste mesmo sentido também depõe o fato ocorrido na Regional Leste II (Minas e Espirito Santo) da CNBB. Os respectivos bispos, reunidos há dias, resolveram rejeitar categoricamente uma proposta de documento elaborada pela comissão preparatória da reunião do CELAM (Conselho Episcopal Latino-Americano) a se realizar proximamente em Puebla. Ora, essa proposta, que mitiga algumas teses aprovadas na reunião do CELAM realizada em Medellin, em 1968, parece gozar do bafejo de Roma.
Considerando tais fatos no seu conjunto é se levado a achar que há nas falanges do "esquerdismo católico", até aqui tão compactas, unidas e bem dirigidas, uma diferenciação de matizes que pode eventualmente ganhar terreno. De um lado estaria a extrema-esquerda eclesiástica, de que d. Helder é um símbolo inconteste. De outro lado, uma esquerda algum tanto (ou algum tantinho) menos radical, influenciada pelas hesitações de Paulo VI, tantas vezes qualificadas de "hamletianas".
No que dará essa diferenciação de matizes? A pergunta só poderia ser respondida em função de um ponto histórico muito interessante, mas de uma amplitude incompatível com as dimensões deste artigo. Há quem diga que quando uma esquerda se cinde em radical e moderada, num primeiro lance os radicais ganham o poder, mas perdem simpatias. Num segundo jogo, os moderados, baseados nessas simpatias, desbancam do poder os radicais. E num terceiro, acabam por executar, com um pouco de lentidão e muitos sorrisos, o programa destes. De sorte que a cisão pode ser, às vezes, uma perda para a esquerda, mas o mais das vezes constitui uma jogada inteligente em que esta ganha a médio prazo.
Será isto aplicável ao presente caso?
O primeiro passo seria a tirania helderiana sob a qual temos vivido até agora. O segundo passo – ou passe – seria agora a cisão.
Numa Igreja infiltrada, intoxicada pela "fumaça de Satanás", e sujeita ao vaivém febricitante dos que a "autodemolem", a confusão é grande. E não é fácil discernir a respeito de eventualidades tão sutis. É a observação atenta dos fatos que se desenrolarem que nos permitirá fazê-lo.
Observação que, quanto a mim, pretendo fazer com o coração transbordante do desejo de que tudo corra rumo à cessação das atividades autodemolidoras, e à expulsão da "fumaça de Satanás". Mas com a imparcial serenidade dos que não consentem em formar uma visão deturpada da realidade, nascida das sugestões de um macio otimismo, ou de um catastrofismo melodramático.